Renata

O início não foi dos mais promissores. Na ultrassonografia em terceira dimensão que virou moda, soubemos que seria menino. Tínhamos que acreditar na palavra do médico, apesar de não distinguirmos praticamente nada naquela imagem disforme que era o nosso filho. Na volta do consultório, durante o trajeto no ônibus, Renata chorou. Chorou porque não sabia, assim disse, como cuidar de menino, nunca havia brincado de boneco, só de boneca. Bateu aquele desespero de não saber o que fazer, de não saber jogar bola, de não saber limpar o pinto, de não saber o que se passa na cabeça dos homens, de não saber o que os homens querem, na contramão do que Freud perguntava sobre as mulheres. Pra piorar, veio a depressão pós-parto, vontade de largar a nova família que se estruturava.

Os primeiros dias não foram fáceis, Miguel chorava muito, o peito não tinha trégua quase nenhuma, a boquinha sedenta de leite e de conforto. Os dias bonitos de inverno davam um alento quando mãe e filho desciam para o sol matinal na pracinha em frente de casa. O vínculo umbilical não é tão umbilical assim, a relação, como qualquer outra, tem de ser construída, tijolo a tijolo, sujeita a chuvas e trovoadas, idas e vindas, amor e desamor, alegrias e tristezas. A obrigação de ter de gostar do próprio filho, a pressão pelo exercício da maternidade só fez piorar a sensação de impotência, esgotamento físico e emocional. Atrevo-me a dizer que os cento e cinquenta dias de licença-maternidade conjugada com férias foram, se não um martírio, uma experiência única para não ser repetida nunca mais. Experiência única e não naquele sentido positivo, de algo sublime, inigualável. Sem dúvida, o primeiro ciclo da maternidade vivido por Renata foi inigualável, inesquecível embora não do jeito que ela esperava.

E o dilúvio passou. Sete anos depois, o choro foi trocado pela cara emburrada quando suas vontades não são satisfeitas. O exercício de adivinhação foi trocado pelo diálogo e pelo entendimento, tudo bem, desentendimentos também. Grunhidos foram trocados por palavras, frases, argumentos cheios de razão, o bebê se transformou numa criança adorável, assim como a relação de mãe e filho. Cada vez mais tenho certeza de que Miguel tinha que ser Miguel mesmo, Renata não podia ter tirado sorte maior do que ser mãe de menino. Mãe-moleca que fala a língua do “menino do rio, calor que provoca arrepio, dragão tatuado no braço”, trecho da canção que de vez em quando canta porque acha o filho parecido com esse menino bronzeado de praia, olhar expressivo, covinhas nas bochechas, às vezes gato caçando rato, é verdade. Mãe-gata (nos dois sentidos, por favor) que lambe sua cria, mas a educa para a vida, que a empurra para a independência, seja para comprar um picolé na padaria, seja para defender-se das brincadeiras de mau gosto de alguns colegas de escola. Mãe-casca grossa que dá esporro quando tem que dar, às vezes quando não tem que dar, mas a vida não é perfeita, e que o ensina a expressar seus pontos de vista com argumentos, e não socos e pontapés.  Mãe-quituteira, cozinheira de mão cheia (minha sogra diz que roubei sua mão direita) que faz as guloseimas preferidas do rapazola, a palha italiana que nós três dividimos, cada um com sua colher, ele com “nojinho” (puxou o pai) de usar as nossas, direto da panela ou do prato. Mãe-faz-tudo que prepara brindes e enfeites do aniversário do arcanjo, com o maior prazer, orgulhosa do produto final, à espera dos amiguinhos que vêm dormir lá em casa na festa do pijama.

Fico embevecido, maravilhado mesmo e com um tiquinho de ciúmes, quando observo os dois juntos, conversando sobre alguma coisa que eu não faço a menor ideia do que seja, se abraçando, o amor incondicional recíproco, sem exigências e cobranças, que surgiu de um espanto inicial, os “mamãe, eu te amo” jogados ao vento porque ele sente, mesmo, vontade de dizê-los, os pedidos para dormir no meu lugar da cama, expulsando-me para a cama de solteiro, os carinhos nas costas que lhe ordena, muito bem acostumado com o calor humano que os pais lhe dão.


Miguel é um cara de sorte. E eu também.

Comentários

Unknown disse…
<3 Que lindo! Te amo também.
Sandra Pinto disse…
E eu sou uma mãe, avó e sogra de muita sorte!
Unknown disse…
Lindo texto!! Adorei!!
Sonia disse…
Lindo, chorei e me emocionei! Seus textos estão cada vez mais cheios de sensibilidade, o semtimento aflorando!
Unknown disse…
Emocionada! Percepção e sensibilidade de pai absolutamente presente! O Miguel é muito sortudo mesmo por ter pais assim.
Unknown disse…
Linda homenagem!!! Difícil até expressar o quão lindo e tocante são suas palavras. Agradeço o presente! Sim, porque ao compartilhar momentos como esse, vc generosamente nos presenteia ao aguçar nossas emoções e proporcionar reflexões sobre o que verdadeiramente deve ser valorizado em nossa existência! Obrigada, querido. E parabéns a Renata e Miguel! bjs