Para mim, era inadmissível. Era inadmissível que um
clube judaico abrisse voluntariamente, em nome da “liberdade de expressão”,
suas portas a um candidato postulante ao mais alto cargo do poder executivo da
República que sempre se orgulhou em demonstrar publicamente seu desprezo pela
democracia, que homenageou, na tribuna da Câmara dos Deputados, um notório
torturador, que vilipendiou a memória de um jornalista judeu assassinado nos
porões da ditadura militar, que sempre fez questão de dizer que Direitos
Humanos servem tão somente pra proteger “vagabundo” e pregou um cartaz na porta
de seu gabinete, em Brasília, quando era deputado federal, onde se lia
“Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. Que disse, a uma
colega, numa demonstração explícita de machismo e misoginia, não merecer sequer
ser estuprada “por ser muito feia”.
Naquela ocasião, no clube que frequentei durante toda
minha infância, o então candidato disse que foi a um quilombo e “o afrodescendente
mais leve de lá pesava sete arrobas”, arrematando em seguida, para gozo da
plateia de cerca de 300 pessoas, que os quilombolas “não servem pra nada, nem
pra procriador servem mais”. Os refugiados também mereceram seu “carinho”, ao
dizer que não se pode “abrir as portas para todo mundo”. Memória curta essa da
claque de apoiadores, sublimando a recente história dos próprios antepassados. As
mulheres também não foram esquecidas, quando disse “eu tenho cinco filhos.
Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”.
Misoginia na veia. E os indígenas, que devem se adequar ao processo
civilizatório em curso, e os bovinos quilombolas, foram informados que não
teriam “um centímetro demarcado”.
Eu ficava me perguntando o porquê de indivíduos,
supostamente esclarecidos, herdeiros de uma memória étnica marcada
indelevelmente pelo ódio, pelo estigma do “estrangeiro” – minha avó materna
sempre dizia que não era polonesa, ela era “judia que nasceu na Polônia” -, não
serem simpáticos a grupos historicamente marcados pelo mesmo processo de
desumanização e marginalização. Não conseguia levar na brincadeira, como alguns
argumentavam, porque era “da boca pra fora”, frases homofóbicas do tipo “prefiro
que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”.
Para mim a solidariedade étnica, sobretudo a
identidade judaica, deve estar associada a um “hiperbem”, um valor seminal que
orienta todo e qualquer comportamento individual. Ser judeu é importante, é um
valor do qual não abro mão, mas este estar no mundo, essa experiência judaica, está
submetida ao exercício da defesa de uma sociedade democrática, que é generosa
às diferenças, que não submete politica e culturalmente supostas “minorias” em
nome da “maioria”. Que prefere pontes a muros, que acredita na porosidade das
fronteiras, físicas e simbólicas. Que condena a banalização do mal. Que, bem ao
estilo judaico, está sempre perguntando porque perguntar é desafiar as verdades estabelecidas
e as verdades estabelecidas só servem a regimes autoritários amancebados com a
censura e o silêncio.
Mas esta relação, que faz todo sentido pra mim e para
muitos judeus que conheço, não é necessária, natural, inexorável, óbvia. E por
que não é assim? Simplesmente porque não existe essa tal de “comunidade
judaica”.
Esse conceito de “comunidade” nos remete à ideia de um
ente homogêneo, um bloco maciço sem fretas e porosidade, onde reina a paz, a
tranquilidade, o consenso, a solidariedade inquebrantável, certo ar bucólico e
até enfado. A narrativa étnica que constrói simbolicamente este discurso, tanto
para dentro quanto para fora, ignora e induz à ignorância de múltiplas formas
de expressão da identidade judaica no Brasil. O estereótipo, como qualquer
estereótipo, reduz e empobrece nossa capacidade de interpretar a realidade. Daí
não fazer sentido algum a expressão “os judeus brasileiros” ou “a comunidade
judaica”. Afinal, de que judeus se está falando? De qual comunidade se está
falando? Não é tudo “farinha do mesmo saco”. Assim como não é a mesma coisa ser
judeu, israelita, sionista e israelense.
Começo a entender – ou acho que começo a entender - a
opção que muitos judeus fizeram pelo candidato da extrema-direita. Eles não
veem contradição alguma entre sua condição judaica e o desprezo pelos direitos
humanos, entre sua condição atávica de “judeu errante” e a crescente
perseguição sofrida pelas religiões de matriz africana, pela população LGBTQI,
pela população indígena assassinada “silenciosamente” no norte do país, pelas populações
ribeirinhas expulsas de seu território por grileiros e “agentes civilizatórios”
do agronegócio. Já disse o presidente, em sua proverbial erudição, que o
“interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore”. Farinha pouca,
meu pirão primeiro. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. Salve-se quem puder.
Esta cegueira moral de parcela dos judeus brasileiros
- associada incontestavelmente à identificação com a agenda ultraliberal do
governo, fator não menos importante na definição do voto, ou ao slogan “Tudo,
menos o PT” – contribuiu para a normalização e legitimação do discurso do ódio
e da intolerância, como no recente episódio de plágio de um discurso do
Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels, pelo agora
ex-Secretário Especial da Cultura, no revisionismo histórico expresso nas
palavras do Ministro das Relações Exteriores ao afirmar que o nazismo é uma
ideologia de esquerda e no empoderamento de grupos até então relegados aos
porões do mundo virtual, gente que se vê à vontade para usar braçadeiras com suásticas
em shopping centers.
O antissemitismo de direita, já velho conhecido de
guerra, ganhou a companhia do antissemitismo de esquerda. A demissão do
Secretário Especial da Cultura foi atribuída à gritaria dos “judeus
brasileiros” e da influência do embaixador de Israel no Brasil. “Mexeram com a
comunidade errada”, bradaram uns. Muita gente que se diz progressista, numa
atitude covarde e infame, passou a cobrar do “povo escolhido” – associando
equivocadamente religião e etnia – admissão de culpa pelo espetáculo grotesco,
afinal de contas, “vocês (os judeus) elegeram esse governo”. Judeus são ricos,
certo? Controlam a mídia e as grandes finanças internacionais, não é mesmo?
Sartre dizia que, se o judeu não existisse, o
antissemita o inventaria. Hoje, no Brasil, o antissemita, por mais canalha que
seja – e sempre o será, de direita ou de esquerda – não precisa cansar sua
beleza para produzir o seu “outro” odiado porque a ajuda vem de dentro dos
muros do gueto moral dos que apoiaram a eleição de um governo brutamontes. Eles
atualizam a figura do “self-hating Jew”, facilitando a vida de quem quer
exterminá-los, mais dia, menos dia. Lembremos Brecht.
Envergonham meus antepassados, matam-nos novamente,
são cúmplices do filme de terror que vivemos nesse país miserável. Têm as
mãos sujas. Sabiam muito bem aquilo que estavam fazendo. Agiram voluntariamente.
Ajudam a cavar a própria cova. A minha cova. A cova dos judeus decentes que
estavam na frente do Clube Hebraica protestando contra a presença do Mal
encarnado.
Não esquecerei.
Não perdoarei.
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