Ontem, por volta de sete e meia da noite, como sempre
faço às terças-feiras, voltava para casa após mais uma sessão de terapia. Saindo
do metrô, caminhei pela Rua Pio VI até a Rua Paissandu, no bairro do flamengo,
zona sul da cidade. A Rua Paissandu é eminentemente residencial e conhecida por
suas imponentes e centenárias palmeiras, que a cruzam de um lado a outro. Segundo
a Wikipédia, ela foi aberta por volta de 1864 e ligava a então residência da
Princesa Isabel à Praia do Flamengo; suas palmeiras teriam sido plantadas em
1865 a pedido do Imperador D. Pedro II, com o intuito de criar uma
entrada monumental para o palácio que havia presenteado à filha recém-casada.
Outra versão, que também já ouvi, diz que as palmeiras foram plantadas para que
a princesa não se perdesse no caminho entre a residência e a praia, servindo
como uma espécie de bússola natural. Ainda de acordo com a enciclopédia
colaborativa virtual, o endereço é dos mais nobres da cidade.
Na esquina
da Rua Pio VI a e Rua Paissandu, achei estranho que duas motocicletas estivessem
atravessadas, uma delas sem o condutor, a outra com o condutor devidamente
protegido (ou melhor, escondido) pelo capacete, atravancando o fluxo. Vai ver,
pensei, o companheiro ausente, hipoglicêmico, sentiu uma vontade irresistível
de tomar um picolé para suprir o organismo de açúcar e, ao passar pela padaria
logo ali, resolveu dar uma parada e cuidar da saúde, somos todos filhos de
deus. A fila de carros que se formava já ia longe. Nenhuma buzinaria, estranho.
Havia um silêncio insólito para o horário.
Andando em
direção contrária ao fluxo, e passando a banca de jornal e as palmeiras imperiais
que me impediam de ver o quadro geral, fui surpreendido com a seguinte cena: o até
então hipoglicêmico empunhava um revólver, o motorista de um dos carros estava
deitado de bruços no asfalto, dezenas de pedestres olhavam a cena, alguns deles
falavam ao celular, acredito que com polícia. Ao perceber-me do que se tratava,
refugiei-me na padaria com medo de tiroteio, mas, logo em seguida, eu e os
outros cagões vimos que, calmamente, três bandidos, dentre eles o ex-hipoglicêmico,
caminhavam de volta às motocicletas para, em seguida, seguirem viagem com o
outro comparsa que, imagino, começava a impacientar-se com a demora dos colegas
de trabalho, e liberarem o fluxo.
Incrédulo
com o que acabava de presenciar, tive de explicar aos motoristas presos no
enorme engarrafamento formado na Rua Paissandu o que havia acontecido. Mas que
ficassem todos descansados, a “operação” já havia terminado com total êxito
(para os bandidos). Detalhe importante: o “arrastão” aconteceu a cerca de
trezentos metros da antiga residência da Princesa Isabel, atual sede do governo
do estado do Rio de Janeiro, e onde fica parada uma “patrulhinha” (ainda se
fala “patrulhinha”?) da polícia militar. Na Praça São Salvador, perto dali, as
crianças continuavam a brincar despreocupadamente e os bares começavam a encher
de gente em busca de um chope gelado.
Dizer que
vivemos uma guerra urbana não declarada é chover no molhado, senso mais do que
comum. O mais espantoso para mim, que tive o desprazer de viver, pela primeira
vez tão de perto algo que, para milhares de outros cariocas é simplesmente uma
vírgula nas páginas trágicas de suas vidas cotidianas (quem nunca ouviu falar
do fechamento, por bandidos fortemente armados, de vias importantes como a
Linha Vermelha e a Avenida Brasil?) é uma espécie de comportamento blasé de
quem observa a cena. Não que houvesse muito mais a fazer, o sentimento de impotência
é devastador, potencializado pela atitude dos criminosos que, certos da
impunidade, fazem aquilo que acham que tem de fazer de acordo com o tempo que
julgam necessário. ELES têm a certeza de que não serão importunados por quem
que seja.
É a banalização
do mal, incorporado há muito ao modo de vida da cidade olímpica.
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