Os dias de outono no Rio de Janeiro são os mais
bonitos do ano. Dizem que a incidência dos raios de sol enseja uma luminosidade
toda especial, e o céu adquire uma tonalidade de azul que, servindo como pano
de fundo ao Pão de Açúcar emoldura, para o deleite de nós, cariocas, o passeio
dominical pelo Aterro do Flamengo, transformado semanalmente em área de lazer. Ontem,
os Sant’Anna Gruman resolveram caminhar até o bairro da Urca, o mais charmoso e
aprazível da cidade, debruçado sobre a baía de Guanabara, com direito a parada
na sua famosa “mureta” para empadas e pastéis de camarão, cervejinha gelada e
mate com limão. Fomos contornando o Aterro, no trajeto de aproximadamente cinco
quilômetros, dividindo o espaço com milhares de outros cariocas que decidiram
curtir o dia de sol ao ar livre, dentre eles, os bravos corredores da Maratona
do Rio de Janeiro.
Próximos do nosso destino, à nossa frente, um grupo de
meninos e meninas de rua de diversas idades e tamanhos andava erraticamente,
visivelmente alterados pelo consumo de drogas, alguns dos quais portavam
garrafinhas com o líquido entorpecente. Xingavam-se e provocavam-se mutuamente.
Um deles batia, com uma camisa enrolada, no rosto de quem passava, a pé ou de
bicicleta. Alguns ciclistas gritavam “sai da mané”; outros, “seus filhos da
puta”. Um menino desafia outro a “passar a mão na bunda” de uma moça que está
prestes a passar em direção contrária. A moça sorri para o grupo antes de ser
abordada, sem ideia do que lhe vai acontecer em seguida. Pobres-diabos, alheios
à realidade que lhes circunda, fugindo desta realidade que lhes nega a
humanidade, invisíveis e invisibilizados, tratados como lixo, estorvo. “Seus
filhos da puta”. Corações endurecidos. Humanos desumanos. Nada a perder, porque
não têm nada a perder.
Não sei por que, mas fiquei pensando na diferença
genética entre humanos e chimpanzés que, parece, gira em torno de 1%. Na roleta
russa biológica, ser ou não dotado de polegar opositor é mero detalhe. A partir
daí, da humanização, tudo o mais é fruto da vontade, da consciência, da
responsabilidade. O grupo com o qual nos defrontamos a caminho da Urca, mortos-vivos
inconvenientes, não apareceu por combustão espontânea, não é um dano colateral,
não é consequência involuntária do processo evolutivo. É o descarte voluntário
de uma sociedade doente. Uma sensação de impotência, raiva e tristeza me
percorreu de cima a baixo, fiquei pensando se no dia seguinte o menino que
“passou a mão na bunda” da moça, cuja idade deve regular com a do meu filho, ainda
estaria vivo, se dormiria ao abrigo do frio, da fome e da violência. Não será
ele tão humano quanto o Miguel? Merece este destino?
Maldito 1%.
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