Quase brasileiros

Na reunião ministerial divulgada recentemente pela imprensa, e cuja transcrição está disponível aos masoquistas de plantão, como este que vos escreve, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, vociferou: 

"Odeio o termo 'povos indígenas', odeio esse termo. O 'povo cigano'. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser preto, pode ser branco, poder ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios. Só pode ter um povo, não pode ter ministro que acha que é melhor do que o povo. Do que o cidadão" 

A negação da existência do indígena enquanto indígena, portador de uma identidade específica, vai ao encontro de inúmeras declarações do próprio Presidente da República. Desde que tomou posse, Bolsonaro faz questão de dizer que é preciso "civilizar" os índios, integrando-o à sociedade brasileira, quer dizer, à sociedade que ele entende ser a brasileira. Na Assembleia da Organização das Nações Unidas, em setembro de 2019, disse que "algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em manter e tratar nossos índios como verdadeiros homens das cavernas". Já disse, também, que os índios são "pobres coitados", que "nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós" e que "cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós". E eu fico a me perguntar "nós, quem, cara pálida?". 

Reproduzindo o estereótipo cheirando a naftalina do índio como um bárbaro que usa tanga, vive entre animais selvagens e precisa ser resgatado pela civilização, Bolsonaro acredita que "o índio quer evoluir, quer médico, dentista, Internet, carro, viajar de avião" e "quando [o índio] tem contato com a civilização, vai se moldando a outra maneira de viver, que é bem melhor que a dele". Ignora, portanto, que faz tempo que a população indígena só quer apito, já usa o celular, voa de avião sem perder sua identidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 42% dela já vive fora das áreas demarcadas.  

É importante lembrá-los, ao presidente e ao ministro, que a Constituição Federal, conhecida como a Constituição Cidadã, explicita, no artigo 215, que é dever do Estado garantir a todos o "pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" cabendo-lhe, sobretudo, proteger a manifestação das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras "e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". O artigo 231, por sua vez, diz que lhes é reconhecida sua organização social "costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Os indígenas reconhecidos, portanto, como agentes do processo civilizatório, e não como meros pacientes. 

O reconhecimento da cultura em suas infindáveis representações, como vetor para o pleno exercício da cidadania, é parte constituinte fundamental de uma sociedade que se quer democrática. É aquilo que se passou a chamar, nos áureos tempos do Ministério da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira, de "cidadania cultural". O ator Sergio Mamberti, que esteve à frente da então Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural e presidiu também a Fundação Nacional de Artes – Funarte, resume bem a importância de vincular cidadania e cultura na construção de uma sociedade que valoriza a diferença como símbolo da riqueza da experiência humana:  

"O conceito de diversidade cultural nos permite perceber que as identidades culturais brasileiras não são um conjunto monolítico e único. Ao contrário, podemos e devemos reconhecer e valorizar as nossas diferenças culturais, como fator para a coexistência harmoniosa das várias formas possíveis de brasilidade. Como o respeito a eventuais diferenças entre os indivíduos e grupos humanos é condição da cidadania, devemos tratar com carinho e eficácia da promoção da convivência harmoniosa, dos diálogos e dos intercâmbios entre os brasileiros – expressos através das diversas linguagens e expressões culturais, para a superação da violência e da intolerância entre indivíduos e grupos sociais em nosso país".  

Quando retiramos de cena os atores sociais que dão corpo e voz à identidade nacional, em toda a sua plasticidade, pluralidade e diversidade, em toda a sua riqueza simbólica, temos como resultado o "povo brasileiro" como discurso vazio, entidade abstrata, monolítica, uniforme e homogênea que exprime uma pretensa "vontade comum". O povo brasileiro, produto mal-acabado do mito das três raças freyreano, transformado numa triste "ficção teatral", como nos ensina Umberto Eco a respeito do fascismo. 

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