O despertador toca. Você se levanta como todas as
manhãs, lava o rosto para tirar a remela, faz xixi, prepara o café, liga a
televisão para se inteirar das primeiras notícias da manhã que, cada vez mais, parecem
crônica policial, lava a louça, coloca a ração para os gatos, escova os dentes,
penteia os cabelos, passa desodorante, tira o pijama, coloca a roupa do
trabalho e sai. O dia segue sem maiores emoções. No meio da tarde, o chefe do
setor de recursos humanos te chama e informa que, devido à “reestruturação” da
firma como consequência da crise econômica, será obrigado a te demitir. Mais um
para as estatísticas. Você sabia que a firma passava por maus bocados, mas não
imaginava que o desemprego era seu vizinho, que você seria a bola da vez, tão
qualificado, tão competente, tanta gente que não merece estar empregada e você
no olho da rua. Angústia, rancor, depressão.
Em estado de choque, você volta para casa, a ficha
ainda não caiu totalmente. Quando cai finalmente, você desaba num choro incontrolável,
um choro gutural, uma sensação de medo misturada à de impotência e vergonha. Você,
um jovem adulto, vê o trabalho como fonte de autonomia financeira, há muito deixou
de depender dos pais para bancar as saídas de final de semana. Agora, não só
você banca as saídas de final de semana como é responsável pelo bem estar de um
filho e pela gestão da casa, paga as contas, o mercado, o condomínio, o plano
de saúde, a escola do filho, o plano de previdência privada porque depender do
INSS é irracional. A identidade construída no ambiente de trabalho é central,
você, além de pai e marido, é engenheiro, médico, advogado, antropólogo. A
identidade profissional é um dos eixos fundamentais do “estar no mundo” na
sociedade contemporânea. Perdê-la é perder uma referência importante na
definição de quem se é, abala a autoestima.
Aos poucos, você vai ganhando chão novamente. Respira
fundo e, dias depois, começa a planejar o daqui para frente. Assina a rescisão
de contrato e recebe o que lhe é devido, dá entrada no seguro-desemprego, que
lhe garantirá algum recurso para os próximos cinco meses, nada perto do que
ganhava no antigo emprego. Sabe que a recolocação no mercado de trabalho não
será fácil. Embora muito qualificado, com diplomas de pós-graduação e
experiência profissional, confronta-se com uma realidade desanimadora: o Brasil
só consegue gerar empregos com carteira assinada para quem ganha salário
mínimo. Só em 2016 foram cem mil. Você é punido por ser qualificado. Nostalgia
da impermeabilidade, da ignorância, da “constância das pedras”, como dizia
Sartre. Pensa em abrir um negócio próprio, na onda do empreendedorismo, mesma
ideia de milhares de desempregados. Já são doze milhões de brasileiros. Dizem
que você, com quase quarenta anos, está velho para o mercado.
Revê custos que, até então, faziam parte de sua cesta
básica. A pizza que comia toda sexta-feira, religiosamente, dessacralizou-se. O
vinho também, pra deixar de ser besta, embora a seleção incluísse apenas os
mais em conta, muitas vezes tão custosos quanto determinadas cervejas. A lista
do mercado foi enxugada para os itens considerados essenciais, e as marcas de melhor
qualidade foram preteridas em favor daquelas com melhor preço. Vai à escola
renegociar o desconto na mensalidade ganho no início do ano, constrangido,
observa o rosto do interlocutor e percebe um olhar misericordioso, piedoso.
Pelo menos, é assim que o interpreta. Consegue manter o plano de saúde, não
quer depender do SUS. Os planos de saúde perderam, em cerca de um ano, quase
dois milhões de clientes.
A vida
como ele é.
Nabor
Coutinho de Oliveira, de 43 anos, matou a mulher a facadas e os dois
filhos, um de sete e outro de dez anos, a golpes de marreta, jogados logo após
do 18º andar do condomínio onde a família morava, no bairro carioca da Barra da
Tijuca. Nabor deixou uma carta escrita de próprio punho, onde expõe os motivos que
o levaram a tomar atitudes tão drásticas e perversas quanto a de tirar a própria
vida e de seus entes queridos com requintes de crueldade. Nesta carta, Nabor dá
a entender que o crime foi motivado por crise financeira. Dentre as
justificativas aos quais os jornais tiveram acesso, lemos o seguinte:
“Sinto um desgosto profundo por ter falhado com
tanta força, por deixar todos na mão. Mas melhor acabar com tudo logo e evitar
o sofrimento de todos.” (grifo meu)
“Ainda não conseguimos contratar o novo plano de saúde porque estava aguardando
a criação do CNPJ. Agora que saiu está com o (empresa) para avaliar preço. Com
o histórico médico da Laís e do Arthur será que aprovam? Será que não vai ficar super caro?” (grifos meus)
Cada um sabe onde lhe dói o calo. Morar num
condomínio de classe média ou classe alta, como são, em geral, os da Barra da
Tijuca, não protege quem quer que seja de sofrimentos objetivos ou subjetivos.
Nabor estava empregado, mas preocupado. Estava amedrontado com a possibilidade
de ser mandado embora e não ter condições de manter o nível de vida da família.
Reclamando de barriga cheia? Não acredito.
A tragédia da Barra da Tijuca é o ingrediente
humano das estatísticas oficiais sobre o desemprego e a crise econômica gravíssima
que o país atravessa, noves fora eventuais problemas psicológicos decorrentes
de ou acrescentados a ela. Não tem cor, não tem partido, não tem ideologia.
Atinge brancos e negros, coxinhas e mortadelas. Podia ter sido eu, podia ter
sido Renata, podia ter sido Miguel.
Ninguém está a salvo.
Link da notícia a respeito da tragédia da Barra da Tijuca:
Comentários
Precisamos irradiar energias positivas, não nos esquecendo das negativas, pois nessa queda de braço é que podemos (ou não) ter o discernimento para tocar as nossas vidas de uma maneira única e fazê-la de forma que aproveitemos, da melhor maneira possível, ao lado do nossos pares.
Abraços.