Sobre bichos e bichas

Crianças gostam de falar palavrão, é uma forma de transgredir as normas impostas pelos adultos, de sair do script, já conscientes de que há termos e expressões considerados “errados” e “feios”, ofensivos a determinados indivíduos ou grupos, estigmatizantes, socialmente desagradáveis e, portanto, dignos de censura. Estamos no campo da cultura, quer dizer, palavrões só são palavrões porque atribuímos um valor negativo ao seu significado, uma espécie de acusação e marginalização de quem se encaixa na categoria utilizada. Um exemplo: diz-se que é falta de respeito chamar alguém de “preto”, afinal “preto é cor, negro é raça”, como já vi escrito numa camiseta. Uma variante: “Black is beautiful”. Retira-se o estigma pela utilização da nova forma de tratamento, agora com um sentido positivo.

E a língua portuguesa é traiçoeira neste campo dos palavrões e “palavras feias”. Palavras com sons parecidos na fala, especialmente quando esta fala está carregada de sotaque regional, como na cidade do Rio de Janeiro, podem causar mal-entendidos e constrangimentos. E as crianças, como disse acima, aproveitam a oportunidade para brincar com o proibido, sobretudo com termos associados ao tema da sexualidade e do corpo humano.

Miguel, outro dia, estava me contando que, na escola, rolou uma conversa entre os meninos sobre “peru ave” (a letra “e” de “peru” soando como “i”) e “piru”, o órgão genital masculino. Em casa, dias depois, veio discorrer sobre as diferentes formas de nos referirmos ao pênis, dentre elas, o “piru” e o “pinto”. Lembramos a ele do “Bráulio”, apelido utilizado há alguns anos numa propaganda institucional do Ministério da Saúde, em 1995, sobre a necessidade de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis. Na época, muitos meninos reclamaram das gozações que passaram a sofrer por se chamarem Bráulio. Miguel também já conhece o termo "caralho", embora já saiba que este termo é mais agressivo (feio?) que os demais, talvez porque “caralho” potencialize a sexualidade do órgão e isto deve ser mantido à sombra, na área do tabu. Breve piada colhida na Internet sobre a diferença entre “pênis”, termo politicamente correto, e “caralho”:

No consultório, o paciente diz que tem um problema no pênis. Quando o mostra, o médico sai da sala, volta com água, óleo e sal e diz: “Primeiro, vamos batizar seu pênis de ‘caralho’, depois a gente vê o que é que ele tem”.

E o terreno animalesco contribui com outros termos ambíguos.

“Veado” e “Viado”. Miguel usou, também dia desses, o termo “viado” com “i” para referir-se aos homossexuais. Expliquei que “viado” com “i” não é uma palavra bacana, que é preferível o termo “gay” em referência a indivíduos que sentem atração por outros do mesmo gênero (eu sei que o tema é bem mais complexo que isso, mas acredito ser suficiente explicação para um menino de sete anos). Que o termo “viado” é agressivo e pejorativo, um “palavrão”, um xingamento, porque coloca o acusado numa posição de inferioridade, marginalidade, erro, desvio, praticamente uma doença. Aos poucos, Miguel vai descobrindo que as palavras têm poder, podem aproximar pessoas ou podem afastá-las, machuca-las, ofendê-las.

Mas será que o termo “viado” é tão agressivo assim? Colhi no blog insuspeito “Dois Perdidos na Noite: o mundo GLS com bom humor e independência” um post intitulado “25 tipos de gays”, dentre os quais: afetado, bicha burra, drogada, homofóbico, suburbana e bicha chata.

“Viado” é mais pejorativo que “bicha”? Não dependeria de quem fala, para quem fala, em que situação fala? O estigma não é uma característica intrínseca do termo, depende da forma como é utilizado na interação social. Por que, então, não lhes retiramos o caráter estigmatizante? Questões, questões, questões...


A educação do Miguel nos exige refletir sobre nossos próprios valores, nossos preconceitos, nossas certezas, sobre aquilo em que acreditamos, a forma como nos relacionamos com os outros. Aprendemos junto com ele. 


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