- Papai, você está
vendo aquele carro preto ali?
- Sim, meu filho, estou vendo aquele carro. Por que?
- Então... A cor daquele carro é preta, mas quando uma
pessoa tem a mesma cor daquele carro ela é
chamada de negra.
- Pois é. Mesma cor, palavras diferentes para
identificar, né?
- Vovê está vendo aquele carro branco ali?
- Sim, meu filho, estou vendo aquele carro branco. Por
que?
- Como é que uma pessoa que tem a mesma cor daquele
carro é chamada? Eu não sei! Não é branca, não?
No próximo dia 20 de novembro, celebra-se o Dia da
Consciência Negra no Rio de Janeiro. Nesta semana que passou, a professora do
Miguel resolveu trazer à baila o tema do preconceito, e pediu, para quem
quisesse e se sentisse à vontade, que contasse aos demais colegas algum
episódio envolvendo comportamentos preconceituosos contra si ou contra alguém
próximo. Os relatos que Miguel trouxe para casa são impressionantes, embora não
surpreendentes. Três breves exemplos:
Uma colega de sala, negra, contou que uma amiga, também negra, brincava
na rua, corria de um lado para o outro, quando uma criança moradora da vizinhança virou-se para
ela e disse “para de correr, sua macaca”.
Um outro colega, negro, contou que, durante uma
partida de futebol, fora da escola, toda vez que roubava a bola do adversário,
também negro, ouvia algo do tipo “seu pai é um macaco”.
Um terceiro colega, negro, lembrou do caso da senhora
que mandou o gerente de um supermercado no chiquérrimo bairro carioca do Leblon “voltar
para a senzala” depois que este mesmo gerente se recusara a buscar certo
produto numa prateleira enquanto a distinta senhora aguardava na fila do caixa.
Acho que a dúvida do Miguel surgiu neste contexto de
discussões sobre cor, raça e preconceito. Anos atrás, era comum vermos negros e
negras vestidos com uma camiseta com os dizeres “preto é cor, negro é raça”, na
esteira no movimento norte-americano “Black is beautiful”. Era, e é, uma
tentativa de de substituir uma categoria de classificação estigmatizante,
portanto, negativa, por outra que carrega consigo conotação positiva. Hoje, nos
Estados Unidos, cai na boca do sapo quem chama um negro de “nigger” (algo como “crioulo”)
e, quando é inevitável a referência ao termo esconjurado, fala-se em “the ‘n’
word”, quer dizer, “aquele palavra que começa com a letra ‘n’”.
Não exagero quando digo que a sociedade brasileira é
racista, e não digo nem institucionalmente, mas nas práticas cotidianas. O
racismo está tão enraizado no tal do inconsciente coletivo, que um menino negro
é capaz de xingar um colega negro de “macaco”, como se esta acusação não lhe
fosse cair na cabeça no dia seguinte por um branquelo azedo que se ache
superior e que resolva mandá-lo “de volta para a senzala”. O preconceito
racial, o racismo está tão introjetado nas mentes e nos corações de adultos e
crianças que as próprias vítimas reproduzem o discurso do ódio e do desprezo.
Eu sou branco – ao menos critérios da democracia
racial brasileira – e tenho olhos claros. Sou judeu, mas, como não é possível
identificar minha etnicidade por critérios físicos, não obstante as tentativas
frustradas dos antissemitas de plantão, e porque a circuncisão também é
característica de muçulmanos e de azarados com fimose, tampouco sofro por minha
condição étnica. Isto não me impede de compartilhar, na medida do possível, da
dor psicológica (e muitas vezes física) de quem sofre rotineiramente com a intolerância
e a ignorância.
Os relatos que Miguel trouxe para casa são
sintomáticos de uma sociedade doente. Crianças de oito, nove anos, vivendo na
pele ou por tabela episódios cujos desdobramentos psicológicos são
imprevisíveis. Acredito piamente, por outro lado, que a utilização de conceitos
controversos, especialmente no campo antropológico, como “raça”, não ajuda na
resolução do problema, muito pelo contrário, exacerbando e naturalizando
diferenças que são, como o preconceito, culturalmente produzidas e reproduzidas.
Em tempos sombrios, de fundamentalismos de todo tipo,
nada melhor do que ouvir as crianças, o futuro. Ainda dá tempo de mudar.
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