Exílio

 

Naquele sábado foi difícil completar a corrida matinal. O ar estava pesado, havia uma espécie de névoa que avermelhava o sol, a garganta seca, sentia que não se tratava apenas de baixa umidade do ar, mas, sem dúvida alguma, dos efeitos das queimadas criminosas que assolam a Amazônia e países vizinhos, como Paraguai e Bolívia. Os ventos, antes benfazejos, traziam más notícias. Cumpri a meta, quinze quilômetros bem corridos e, então, muita água para hidratar e um banho gelado em pleno setembro curitibano.

 

Peguei a sacola e fui à feira na rua de trás. Depois dos ovos vermelhos de galinhas felizes – como diz a diva Paola Carosella – comprados sempre com o mesmo simpático casal de velhinhos (pode dizer “velhinhos” ainda?), sigo à mesma barraca de legumes, verduras e frutas, a banca do Maurício, cuja produção é própria, e levo cebolas, tomates (incluindo uma caixinha de tomates-cereja, pensando numa salada grega), batatas, cenouras, berinjelas, abobrinhas, um molho de espinafre, bananas-prata e tangerinas pequeninas.

 

Em casa, enquanto descarrego as compras - Leopoldo, nosso felino mais velho, como sempre, tenta mordiscar as folhas de espinafre - percebo que faltavam os tomates e as abobrinhas. Acondiciono o que veio na geladeira, na fruteira e no cesto de ovos e volto ao Maurício. Lá chegando, ao me ver, exclama “ele (o outro funcionário) esqueceu os tomates e as abobrinhas”. O rapaz me entrega os renegados legumes (opa, perdão, tomate é fruta!) e volto para casa, pela segunda vez. Percebo, então, que, escrito com caneta hidrocor azul, luzia o seguinte na sacola: “R$ 6,88 Flamenguista”.

 

Desde que vim morar em Curitiba, no inesquecível dia oito de março de 2018, passei a usar quase que impreterivelmente todos os finais de semana a camiseta do Flamengo - ou, como muito bem apropriadamente diz uma amiga da Renata, “o traje de gala”. Curioso é que, naquele sábado, estava com a camiseta da seleção argentina, trazida em 2010, líder das eliminatórias sul-americanas para a próxima Copa do Mundo de futebol, e por quem nutro um afeto incondicional (não a seleção propriamente, mas os portenhos e a cidade de Buenos Aires, em particular). Achei interessantíssima a forma como me veem. E por que?

 

Para mim, vestir a camiseta do Flamengo passou a ser mais do que a afirmação da identidade clubística, coisa que também fazia quando morava em casa, no Rio de Janeiro, na praça São Salvador, no bairro do Flamengo, e ia fazer a feira também aos sábados no Largo do Machado e comprava, além dos legumes, verduras e frutas, “casadinhos de doce de leite”, inexistentes por aqui, e espiava os gatinhos para adoção logo adiante, onde, inclusive, conhecemos o Leopoldo há dez anos. Vestir a camiseta do Flamengo passou a ser, então, aqui, também uma afirmação da identidade carioca.

 

Os idiotas da objetividade – salve Nelson, apesar de tricolor... – dirão que é mais do que óbvio ululante que o feirante me reconheça como “flamenguista”, na medida em que, um sábado sim e outro também, apareço com o mesmo traje. Sim, é verdade. No entanto, fico pensando se, na saudosa feira do Largo do Machado, estaria escrito na sacola a mesma coisa ou, quem sabe, “rapaz bonito de olhos verdes” (!) ou “rapaz tímido” ou “rapaz com tatuagem do coiote” ou “rapaz barbudo” ou simplesmente nada – que é o mais provável, no Rio de Janeiro.

 

Interpreto que, embora não tenha sido a intenção do feirante, simpático e solícito, identificar-me como “flamenguista” é uma forma não-intencional e não-agressiva, tampouco xenófoba ou provinciana (não neste caso), de dizer que não sou daqui. Esta constatação, por ser verdadeira, não me machuca ou ofende, de jeito algum. Senti-me orgulhoso, porque somos aquilo que queremos ser em diálogo com a maneira como os outros nos veem, como espelhos que nos devolvem a imagem, afinal, não vivemos isolados numa caverna. É gratificante ter ratificado, pelo outro, aquilo que desejamos transmitir como nossa “máscara social”.

 

Outro fenômeno curioso incorporado na afirmação da carioquice foi a trilha sonora das memórias afetivas que ilustram minha história. Chico Buarque sempre foi referência musical, mas nunca me havia levado às lágrimas – de saudades e de alegria - como acontece rotineiramente agora. Também povoam o Spotify Beth Carvalho (“Vou festejar”), Clara Nunes (“Tristeza pés no chão”), Gilberto Gil (“Aquele abraço”), Jorge Ben Jor (“País tropical”, “Filho Maravilha”), Benito Di Paula (“Retalhos de cetim”), Jorge Aragão (“Papel de pão”), Diogo Nogueira (“Alma boêmia”) e um punhado de outros que me confortam na solidão das corridas dominicais pelas ruas desertas de uma cidade triste.

 

A música e a literatura são veículos poderosos de expressão de identidade porque expressam maneiras de ver o mundo, de interpretá-lo. A primeira vez que ouvi “Sabiá” – do Tom Jobim e do Chico Buarque -, admito, envergonhado, foi há muito pouco tempo. Estava sentado num bar perto de onde moro – é tão difícil dizer “casa”... – e percebi o porquê de minha paixão por Chico – perdão, Tom -, sua capacidade de colocar em palavras a tradução daquilo que sinto. A letra fala de um momento terrível do Brasil, embora seja possível encaixá-la à experiência individual de cada um de nós. 

 

Vou voltar

Sei que ainda vou, vou voltar!

Para o meu lugar

Foi lá e é ainda lá

Que eu hei de ouvir

Cantar uma sabiá

Cantar o meu sabiá 


Vou voltar!

Sei que ainda vou voltar

Vou deitar à sombra

De uma palmeira que já não há

Colher a flor que já não dá

E algum amor talvez possa espantar

As noites que eu não queria

E anunciar o dia


Vou voltar!

Sei que ainda vou, vou voltar.

Não vai ser em vão

Que fiz tantos planos

De me enganar

Como fiz enganos

De me encontrar

Como fiz estradas

De me perder

Fiz de tudo e nada

De te esquecer

 

Sim, eu sei que ainda vou voltar para o meu lugar, o meu lugar no mundo. É lá que eu ouvirei uma sabiá. E sei perfeitamente que as coisas não serão as mesmas como eram em 2018, que a nostalgia é inimiga da implacável realidade objetiva, mas deitarei tranquilamente à sombra de uma palmeira que já não há, lá no Aterro do Flamengo. E, embora tenha me enganado ao fazer planos que não se cumpriram e estradas que me fizeram perder por aí e fiz de tudo e não a esqueci, não “cuspirei no prato que comi”. Ai, Chico...

 

O escritor uruguaio Mario Benedetti, que também fui conhecer recentemente, por indicação do meu pai – e é tão bom quanto o conterrâneo Eduardo Galeano, um patrimônio literário mundial, na minha modéstia opinião -, tem passagens poderosas sobre a construção daquilo que chamamos de “eu”, daquilo que é experimentado como nosso lugar no mundo, os caminhos e descaminhos que tomamos ao longo da caminhada, as escolhas que tomamos e suas consequências, a inevitabilidade do confronto entre passado e presente, entre memória e realidade. O trecho a seguir, extraído de “A trégua”, dialoga com “Sabiá”, a nostalgia e a palmeira que já não há. Imaginar que o retorno será fácil é enganar-se, mas vale a pena.

 

“O que acontece é que o país mudou, e eu também. Durante muitos anos o país esteve amputado de muitas coisas e eu estive amputado do país. Tudo é questão de tempo. Pouco a pouco vou entendendo um passado que, entretanto, está aqui, ao alcance. Sinto, além disso, que, pouco a pouco, me vão aceitando como sou, quer dizer, o de agora e não o da lembrança. Há experiências que não são intercambiáveis. Nas casas de câmbio e nos bancos você pode trocar pesetas por pesos e vice-versa, mas não pode trocar frustrações por nostalgias”

 

Em “A trégua”, Benedetti descreve um personagem que, prestes a se aposentar, repensa a relação com os filhos, com o trabalho, com seus amores passados e presentes. Neste trecho, Martín, o personagem, fala um pouco do que sente por sua cidade, Montevideo.

 

“Creio que, neste momento, se me cravou definitivamente uma convicção: sou deste lugar, desta cidade. Nisso (é provável que em nada mais) acredito que devo ser um fatalista. Cada um É de um único lugar na terra e aí deve pagar sua cota. Eu sou daqui. Aqui pago minha cota. Esse que passa (o de sobretudo longo, a orelha de abano, o ronco raivoso), esse é meu semelhante. Ignora que existo, mas um dia me verá diante de si, de perfil ou de costas, e terá a sensação de que, entre nós, há algo secreto, um recôndito laço que nos une, que nos dá força para entender-nos. Ou, talvez, nunca chegue esse dia, talvez ele nunca apareça nessa praça, nesse ar que nos faz próximos, que nos comunica. Mas não importa; de toda maneira, é meu semelhante”

 

Eu sou Martín, um fatalista. Eu sou do Rio de Janeiro. Sempre acho graça da Renata quando fala do “bafo quente” que nos estapeia ao sair do avião no Santos Dumont ou no Galeão, mas, no fundo, eu também gosto. Gosto da displicência do andar e do falar, do sotaque chiado; gosto de entrar no supermercado Mundial e ouvir o locutor oficial anunciando as ofertas do dia; do vendedor de mate na praia; do metrô e sua voz oficial, “próxima parada, Flamengo, desembarque pelo lado direito”; da multidão andando pelas calçadas, ocupando praças e parques nos finais de semana, descamisados, sem vergonha do corpo; das pessoas tomando cerveja sentadas no meio-fio, improvisando um sambinha. Gosto do jeito carioca de ser, que tem com a cidade uma relação visceral, quase pornográfica.

 

Eu era somente uma árvore naquela floresta, mas não tinha ideia de que aquilo ali era uma floresta. Precisei sair, tomar distância, para perceber que era parte de algo maior do que eu mesmo e que, embora não conheça todas as outras árvores e, possivelmente, não consiga conversar com todas elas, compartilhamos algo. Inexplicável, indefinido, talvez. Assim como Martín e o senhor de sobretudo.

 

O exílio serviu para isso, então. Obrigado, Curitiba. 

 


 




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