O coxinha debuta nos trens da Central do Brasil

Meus colegas de turma do mestrado em Sociologia e Antropologia, lá no início dos anos 2000, viviam me achincalhando porque consideravam inadmissível que um antropólogo, alguém que carrega no sangue o gosto pela diversidade social e cultural, nunca houvesse tomado um trem. Tudo bem, o metrô também é um trem e eu sempre fui seu habitué, mas eles falavam era dos trens que partiam da Central do Brasil em direção aos subúrbios cariocas e à baixada fluminense. Era um ritual de passagem comezinho a qualquer um que quisesse conhecer o “deep Rio de Janeiro”. Eu, playboy da zona sul, ancestral dos coxinhas pós-modernos, tinha que tomar vergonha na cara e reparar esta gravíssima falha de caráter o quanto antes. Tentei convencê-los de que trem é trem em qualquer lugar do mundo, que minhas andanças nos trilhos do velho continente europeu de mochila nas costas, viajando de Munique a Salzburg ou de Veneza a Viena, já seriam suficiente prova de minha condição de flaneur. Logo eu, que adoro andar pela cidade, gasto sandálias e mais sandálias indo e vindo a pé do trabalho, já grisalho de tanto pegar ônibus e ensinar meu filho a circular pela cidade em transporte público. Não, senhor.

Quinze anos se passaram e o grande dia chegou. Obrigado a resolver pendengas burocráticas numa repartição pública em Madureira, coloquei o despertador para as seis e meia da manhã embora o horário agendado para meu atendimento fosse às nove e meia. Não tinha a menor ideia de quanto tempo levaria de casa até o destino, pela necessidade de fazer baldeação entre a estação do metrô da Central do Brasil e a plataforma propriamente dita dos trens da Central do Brasil, que não tem o charme de uma Penn Station, em Nova Iorque (coxinha! coxinha! coxinha!), mas dá para o gasto. Dirigi-me à bilheteria e pedi um bilhete de ida e volta, perguntando à solicita atendente qual o trem para a estação de Madureira. Sairia, dali a poucos minutos, um expresso, respondeu-me a senhorinha. Desci as escadas em direção à plataforma correspondente, entrei na composição refrigerada (um luxo), que estava vazia porque ia à contramão do fluxo matinal, em direção ao centro, sentei num dos bancos e esperei a partida, que aconteceu em seguida.

A viagem deve ter levado uns vinte, vinte e cinco minutos. No trajeto, um vendedor ambulante oferecia um popularíssimo refrigerante de guaraná e água mineral, outro carregava barrinhas de cereal, um “obreiro evangelizador” muito bem vestido, de terno branco, de uma das centenas de igrejas evangélicas que se espraiam, mais do que tudo, mais do que os tentáculos do Estado sem dúvida alguma, nestas paragens da cidade do Rio de Janeiro, pedia contribuições, que fosse uma moeda de cinco centavos. Um grupo de cinco ou seis policiais militares conversava animadamente ao meu lado, devidamente paramentado com o que me pareciam ser coletes à prova de bala.

Resolvida a pendenga, tomei o trem de volta à Central do Brasil. Uma pena não ter tido mais tempo para explorar aquela parte da cidade, afinal, sempre quis visitar o famoso Mercadão de Madureira, tradicional centro de comércio popular, onde nós, coxinhas de classe média, que comemos mortadela e arrotamos caviar, costumamos fazer nossas compras. Quem não gosta de uma promoção, de uma pechincha, não é mesmo? Na volta, fui em pé. Não dá pra ganhar todas.


Pronto. Etnografia realizada com sucesso. Onde pego minha carteirinha de antropólogo? 







Comentários

Anônimo disse…
Muitas vezes as pessoas estão mais preocupada com os rótulos que com as ações propriamente ditas. Imagine se uma pessoa pode ser mais ou menos indignada por questões sociais só porque não vive na carne a mesma experiência de quem é foco do problema? E digo mais, gostaria que perguntassem a que anda de trem todos os dias quais suas percepções, valores e sua ética. Devemos honrar nossas origens e a dos demais.
Rogério disse…
Você me fez lembrar minha primeira viagem em um trem carioca. Do Engenho Novo à estação Central. Lá pelos idos de março de 1967. Também meu primeiro dia no emprego, como office-boy, nas proximidades da Praça Mauá. Quando o trem parou na estação, inexperiente, entrei com o braço esticado para cima, segurando a marmita. De tão cheio o vagão, não pude mais abaixá-lo. Cheguei ao centro com o braço dormente. Mas não perdi a comida...