Nos sábados à tarde, lá pelas quatro, íamos ao Maracanã assistir o Flamengo jogar contra o América ou o Bangu. Eram jogos com pouco público, dificilmente passava de dez mil rubro-negros, espalhados pelas arquibancadas de concreto do Mário Filho. Não fossem os poucos ambulantes vendendo flâmulas, bandeiras e camisetas nos arredores, um incauto não saberia que, lá dentro, o Mais Querido disputava mais um jogo do campeonato carioca. Não havia tumulto, dava até pra ouvir o vendedor do cachorro-quente Geneal, um clássico, anunciando, lá de longe, a delícia que vinha envolta num plástico vagabundo. Estacionava o carro numa rua das imediações, estava em casa, filho dileto da vizinhança, tijucano orgulhoso. Geralmente, o Flamengo vencia de três ou quatro. Era boa distração para um sábado qualquer. Na volta, vínhamos escutando a Rádio Mec - música clássica, outra de suas paixões - ou a Rádio Globo, com os comentários do jogo que havíamos acabado de assistir, in loco. Na Confeitaria Itajaí, na Rua das Laranjeiras, depois de atravessarmos o Túnel Santa Bárbara em direção à zona sul, levávamos uma pizza napolitana (só molho de tomate caseiro e azeitonas pretas) e uma garrafa de Coca-Cola, o lanche da tarde, pra compartilhar com minha mãe e minha irmã. Foram muitas tardes de sábado assim, uma pena que não guardei os canhotos das entradas das partidas.
Mas também vivemos a emoção de pular e cantar com o Maracanã lotado de vermelho e preto. Naquele ano de 1992, o Flamengo ia mal das pernas no Campeonato Brasileiro, chegou a amargar a décima-quarta posição. Capitaneados pelo "maestro" Júnior, mais conhecido por "capacete" e "vovô garoto", a equipe deslanchou e, para chegar às semifinais, precisava derrotar o Internacional de Porto Alegre naquela tarde de domingo. Decidimos ir, de supetão. À medida em que nos aproximávamos do estádio, a euforia aumentava, a torcida chegando de tudo quanto é canto. A compra dos ingressos foi um martírio, como sempre acontecia em jogos de grande apelo, uma multidão caótica aglomerando-se em torno das bilheterias. Nunca entendi como aquela balbúrdia funcionava, mas funcionava, de um jeito ou de outro. Conseguimos bilhetes para as cadeiras azuis inferiores, embaixo das arquibancadas, cuja visão do campo é parecida com a do treinador. No segundo tempo, em cobrança de falta magistral, o "capacete" fez um a zero e, mais tarde, Zinho fechou o placar em dois a zero. O Flamengo classificou-se para o mata-mata e, como conta a História, sagrou-se pentacampeão brasileiro. Lembro-me perfeitamente que, no carro, na volta pra casa, ouvindo a rádio Globo, o comentarista Washington Rodrigues, o "Apolinho", ele mesmo torcedor rubro-negro e que, anos depois, treinou a equipe sem muito sucesso, vaticinou que "deixaram o Flamengo chegar". E deu no que deu...
Eu não dormia tarde durante a semana porque estudava de manhã e tinha de acordar cedo, as seis horas da madrugada. Assim, muitas vezes, às quartas-feiras, adormecia antes do jogo do Flamengo terminar, quase à meia-noite. Não havia Internet, o jeito era torcer para que o moço do jornal já o houvesse deixado na portaria do nosso prédio para que eu me inteirasse do resultado. A alternativa, mais rápida, era ir cutucá-lo na cama e perguntá-lo, primeiro, se o Flamengo havia perdido. Ele, então, sem abrir os olhos, resmungava que "não" ou que "sim" ou balançava a cabeça. Se a resposta fosse "não", eu perguntava se havia ganho, e os mesmos movimentos se seguiam.
Ia trabalhar de calça jeans e camisa social. Tomava o ônibus da linha 184 (Laranjeiras-Central do Brasil), perto de casa, na rua Estelita Lins, em direção ao centro da cidade. Era comum voltar na hora do almoço, e nos pegava na escola, quando passamos a estudar de manhã, na quinta série, em 1989. No final do dia, quando chegava em casa e eu ia abraçá-lo, sentia – e ainda sinto – o cheiro de sua roupa e ficava imaginando seu dia-a-dia na "cidade". Às vezes, nos fazia uma surpresa e escondia, na cristaleira da sala, "charutos" de chocolate, com recheio cremoso, envoltos em papel celofane colorido. Era o famoso "ratinho" que nos surpreendia.
Nas férias de verão, levava-me uma ou outra vez ao escritório, no imponente edifício negro do BNDES, em frente à Petrobrás. Era um dia especial porque eu ia à "cidade", que era a forma como muitos cariocas se referiam ao centro da cidade, e era a chance de andar de ônibus e, ainda mais bacana, metrô. A tranquilidade da nossa vizinhança contrastava com a confusão organizada do Largo da Carioca e o mar de gente indo e vindo. Eu adorava curtir o ar-condicionado e aqueles adultos todos em suas mesas e com suas roupas de trabalho e eu podendo mexer num computador que, naquele tempo, devia ser o suprassumo tecnológico. Atrás de sua mesa, havia um cartaz com uma imagem e umas palavras em espanhol e lembro que "frijoles" (feijões) era uma dessas. Seria a legenda de uma imagem de Honduras ou Guatemala? Algo relacionado à reforma agrária? Lá de cima, eu ficava observando o tráfego da Avenida Chile. Na hora do lanche, no meio da tarde, subíamos ao último andar, no refeitório. Era uma curtição.
No nosso apartamento da Rua Luís Cantanhede, em Laranjeiras, onde nasci e vivi até meus 21 anos, havia um pequeno "jardim de inverno". Ali, ficava uma cadeira de balanço, onde se sentava por muito tempo e lia livros e os jornais do dia e os acumulados que se empilhavam em algum lugar da sala, O Globo e A Folha de São Paulo. A leitura também é uma de suas paixões. Quando deixei o quarto que dividia com minha irmã, passei a ocupar o cômodo que chamávamos de "biblioteca", cujo armário que preenchia uma parede de cima a baixo, estava cheia de livros com temática política e econômica, duas pequenas escrivaninhas e discos de vinil. Lembro da capa de um disco do grupo folclórico chileno Quilapayun que combatia o arbítrio dos militares com música que te arrebata o coração e, hoje, quando os escuto e vejo no Youtube, não consigo deixar de pensar naquela época.
Às vezes, eu o ajudava a lavar o Gol creme modelo 1982, placa XS 4816, que ficava estacionado na garagem semicoberta, ao lado da casa do porteiro. Usávamos uma mangueira roxa, que também aproveitávamos em dias de calor no Rio de Janeiro, ou seja, quase sempre.
Durante muito tempo, colecionei latinha de Coca-Cola do mundo inteiro e, abrindo mão de mais uma horinha de sono, levava-me domingo logo cedo ao Passeio Público, onde funcionava uma feira de antiguidades. Lá, uns doidos varridos como eu compravam de um certo Saul, indivíduo grosseiro, vulgar, fumante inveterado, que soube haver morrido anos depois, latinhas de tudo quanto é país, às vezes ainda úmidas, que ele conseguia nos navios que atracavam no porto do Rio de Janeiro. A grana que eu "investi" nessa coleção não faço ideia, tampouco suas horas de sono perdidas.
Apresentou-me aos sebos do centro da cidade. Passei a frequentá-los regularmente, como uma espécie de terapia. Comprava um monte de livros e lia o que podia. A Berinjela, no subsolo de um edifício comercial da Avenida Rio Branco, era um oásis no meio do dia. Em meio à literatura brasileira, à temática judaica e aos "sérios" de antropologia e política, era brindado com uma trilha sonora de primeira qualidade, graças à simpatia e bom gosto dos sócios, Silvia (ela sempre escutando uma rádio argentina) e Daniel que invariavelmente me perguntavam "como está teu pai?". Adorava quando, ao chegar, Daniel vinha me mostrar alguma raridade que talvez me interessasse.
Quando entrei na faculdade de Ciências Sociais da UFRJ, no Largo de São Francisco, passamos a almoçar juntos no centro da cidade. Logo ali, na rua do Ouvidor, palco de muitas estórias e personagens de Machado de Assis, ficava a Confeitaria Manon, tradicionalíssima. Nos fundos dos balcões de doces e salgados, o restaurante. Ao passar pela porta de vidro, éramos transportados ao início do século XX. Luzes em penumbra, silêncio, talhares de prata pesadões, garçons de terno branco e gravata borboleta. O couvert era servido com os salgadinhos vendidos na parte da frente e, de prato principal, um inesquecível filé com palmitos.
Quando eu fui morar com Renata, em 2005, transferimos nossos almoços para um pequeno restaurante japonês perto da minha casa. Pelo menos uma vez por mês, entre sushis e sashimis, a conversa ia longe e não havia pauta pré-definida, falava-se daquilo que tivéssemos vontade de falar, sem constrangimentos nem vergonhas. Não era bem um mútuo processo analítico, embora fizesse bem a ambos. Por muito tempo, aliás, ele revezou com minha mãe a tarefa de me levar à psicóloga, em Copacabana, no final da tarde, sem antes passar no Bob`s da praça do Lido para comer um cachorro quente. Depois, visitávamos meus avós maternos e ele e meu avô divertiam-se lendo a literatura judaica no dialeto iídiche.
A memória afetiva não tem muita lógica, ela vai e volta, não é linear, não é cronológica. Os filmetes registrados em minha retina que compõem esta minha colcha de retalhos são como pequenos tijolinhos que construíram a relação que estabeleci com meu pai que, outro dia, completou 70 anos. Essa nossa história compartilhada nos fez ser quem somos.
Comentários