Na cozinha da casa dos meus pais, em Copacabana, há uma mesa de fórmica azul, quadrangular, de quatro lugares, daquelas antigas que dobram ao meio. As pequenas banquetas, de tampo azul também, ficam embaixo. Hoje rebaixada ao papel de móvel coadjuvante, já que a mesa onde se fazem as refeições rotineiras é maior e fica na saleta ao lado, já teve seus dias de glória no apartamento de Laranjeiras, ali sim desempenhando papel de destaque ao longo de minha infância e adolescência, onde almoçava antes de ir pra escola (quando estudava à tarde) ou voltando dela (quando estudava de manhã), compartíamos a pizza de muçarela da Itajaí e a Coca-Cola de um litro em garrafa de vidro retornável - suficiente para nós quatro -, geralmente aos sábados, o pão francês em formato de bisnaga cortado em rodelas e comprado na padaria Aliança da Rua das Laranjeiras, a salada de atum adornada com pedaços de tomate por cima e o “ovo quente” que se comia de colherzinha e uma pitada de sal.
Também resistem de outros carnavais talheres, panelas e uma sanduicheira, inexoravelmente emporcalhada a cada e toda vez que preparava queijo quente. Da última vez que lá estive de visita, mantendo a tradição, foi preciso colocá-la “de molho” porque o queijo, sempre abundante e que, por isso mesmo, havia transbordado para além das fronteiras do pão de forma e ameaçava cair sobre a boca do fogão, depois de esfriar, colara no metal.
Nas areias da praia de Copacabana, vejo passar o mesmo rapaz cabisbaixo que via passar, anos atrás, nas areias da praia do Leme, vendendo biscoitos Globo em dois grandes sacolões pendurados nos ombros.
Depois de almoçar no Bar do Joia, perto da Central do Brasil, volto caminhando pelas ruas do centro da cidade que fazem parte do meu mapa afetivo. Na Cinelândia, um pouco cansado do ofício de flaneur, sento-me num banco de madeira em frente ao bar Amarelinho e fico a observar a fila de gente à espera do atendimento numa conhecida bomboniere. Dali a pouco, um rapaz apregoa em alto e bom som sua rosquinha assada polvilhada de açúcar, dando um toque pornográfico à oferta:
Quem quer comer a minha rosca? Minha rosca é larga e quentinha!
Esse é o mesmo rapaz que, por muito tempo, quando moramos na praça São Salvador, víamos oferecer suas rosquinhas, com o mesmo bordão e a mesma entonação, pelas ruas do Catete e da Glória. A reação dos passantes, tanto desta quanto das outras vezes, era a mesma, um risinho cúmplice.
Na praça São Salvador, o mesmo pipoqueiro – agora, grisalho - que tinha meu filho como assíduo freguês continua batendo ponto na entrada do parquinho das crianças. Sentado na Adega da Praça, tomando uma cervejinha gelada, observo passar na calçada em frente uma senhora, moradora de nosso antigo prédio, inseparável de seu cão, mas desta vez o cão não estava. E a notei triste.
O “meu” barbeiro, ali no Salão São Salvador, cortava o cabelo de outro freguês, na mesma cadeira de sempre. Eu o saúdo com um aceno e ele me devolve a gentileza. Na rua Paissandu, a caminho do metrô, a bandeira do Flamengo permanece inviolável na janela de um apartamento e, na estação Flamengo do metrô, a música-tema que sai dos alto-falantes continua embalando nosso sentido de pertencimento local.
É verdade que o Jorge, o porteiro brincalhão que nutria um enorme carinho pelo Miguel, aposentou-se. Os personagens que apareceram nesta última visita - incluída aí a mesa de fórmica -, por outro lado, desfilando diante dos meus olhos, desempenham papéis fundamentais numa espécie de curta-metragem ilustrativo de parte da minha memória, de quem eu sou, de minha identidade, do meu lugar no mundo. Como que congelados no tempo, intocados, sagrados, impolutos, posso carregá-los para onde eu bem quiser, confortando-me sempre que, num belo domingo de sol, eu me veja sozinho diante das tristes araucárias.
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