Lá na casa dos meus avós maternos, falava-se polonês. Minha
avó era uma leitora voraz de romances, havia sempre um punhado deles na
escrivaninha, emprestados da biblioteca do Instituto Brasil-Estados Unidos.
Eram escritos em inglês, e um pequeno dicionário amarelo inglês-polonês/polonês-inglês
a ajudava quando lhe fugia o significado de qualquer palavra no idioma de
Shakespeare. Meu avô, ao longo dos anos, foi perdendo a audição e, quanto menos
ouvia, mais alto colocava o volume da televisão da sala de estar, levando minha
avó à loucura. Gritava, em alto e bom polonês “Abaixa isso, David!”, e meu avô,
na maior cara de pau, respondia que não estava tão alto assim. Minha avó falava
muito bem o português, e eu não conseguia perceber qualquer sotaque. Meu avô,
por outro lado, apesar de décadas vivendo no Rio de Janeiro, jamais o perdeu. Nunca
foram repreendidos por falarem uma língua que não o português no espaço
público, não que eu saiba.
Eis que, dias atrás, brasileiros “da gema” sofreram na
pele o medo e o ódio xenófobos. Um grupo deles caminhava despreocupadamente
pelas ruas de Londres, falando português, quando, de repente, uma “nativa” que
passeava com seu cachorrinho os interpelou agressivamente, gritando que
parassem de falar numa língua estrangeira enquanto estivessem no “país dela”. Ela
se sentia “ameaçada” pela invasão bárbara, segundo o relato de um de nossos
conterrâneos.
A língua que falamos é, por mais óbvio que pareça, “apenas”
um meio de comunicação. É um veículo de transmissão de valores, crenças,
sentimentos, visões de mundo. A língua, em si, portanto, não significa nada.
Aliás, a língua em si não existe, existe apenas como símbolo, incorporação
concreta de significados compartilhados pelas pessoas, ela é consequência das
relações interpessoais. Neste sentido, falar a mesma língua, a despeito de
permitir-nos entender, a princípio, o que nosso interlocutor fala, não significa
que concordamos inevitavelmente com ele nem que o consideramos parte do “nosso
grupo”. Mesma língua, crenças e valores
distintos, memórias e identidades muitas vezes incompatíveis ou conflitivas.
Será mesmo que a língua que falamos define nossa
identidade nacional? Será ela um atributo necessário, embora não suficiente?
Será suficiente? Será apenas um aspecto prático de nossas vidas, que nos ajuda
a comprar o pãozinho do café da manhã e a pagar as contas no banco sem maiores
inconvenientes?
Falar a mesma língua, em sentido amplo, não é passaporte
para uma vivência comum. Um brasileiro nativo
que fala português e destila seu ódio contra minorias étnicas e sexuais, por
exemplo, não tem nada em comum comigo, diferentemente de um brasileiro adotivo
que não fala português ou fala com dificuldade e advoga por uma sociedade pluricultural. Sem falar nas gírias e nas “expressões
idiomáticas”, as línguas regionais. Um amigo cearense me desafiou a descobrir o
que ele falava, na velocidade que ele costuma falar quando entre os “seus”, em
Fortaleza, e eu tive que pedir ajuda ao dicionário de “cearês” (sim, existe um
dicionário de “cearês”). Multilinguagem, identidades plurais, nacionalidades
polifônicas.
E, se levarmos a sério esse negócio de nacionalidade,
é bom aprendermos a língua guarani. Pode até ser difícil, mas a probabilidade
de falarmos “cidadões”, como alguns andando balbuciando por aí, é mínima...
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