Há uns meses
publiquei artigo
em que contestava o lançamento de editais com a “temática afrodescendente”
voltada exclusivamente para produtores e criadores negros. Argumentei, na
oportunidade, que o Ministério da Cultura tentava racializar as políticas
públicas de cultura, acusando-se gestores, comissões de seleção instituições de
má-fé (eufemismo de “racismo”), por omissão ou conivência. A ausência de negros
em comissões de seleção seria um exemplo de discriminação e do
“brancocentrismo” dos editais públicos lançados pelo MinC. Como se o fato de o
julgador ter a pele escura o impedisse de avaliar corretamente, por exemplo,
projetos “de branco” mais qualificados que projetos “de negro”. Como se o fato
do julgador ter a pele clara o levasse, inexoravelmente, a selecionar um
projeto “de branco”, por afinidade fenotípica. Argumentei, também, que tomar
como critério de seleção de projetos a cor ou “raça” do proponente é um
equívoco, por desconsiderar a qualidade de projetos elaborados por “não-negros”
tratando de temas “negros” e a sensibilidade estética do proponente. Questionei
a existência de cultura “negra” produzida apenas por indivíduos de pele escura,
tanto quanto uma cultura “branca”, produzida por indivíduos de pele clara (o
que, por si só, já é discutível, porque é preciso definir o que considerado
claro e o que é considerado escuro). As distorções logo apareceram.
A Fundação Nacional
de Artes – Funarte, gestora do Edital Prêmio Funarte de Arte Negra, recusou-se
a receber o projeto de dez proponentes autodeclarados “negros” que, sob a
direção do dançarino Irineu Nogueira, tentaram inscrever o espetáculo “Afro
Xplosion Brasil”. O veto aconteceu porque, segundo a autarquia vinculada ao
Ministério da Cultura, o representante jurídico do grupo, a Cooperativa
Paulista de Dança, é presidido por um “branco”. O edital diz que, no caso de
representações por pessoas jurídicas, só estão aptas a participar do Prêmio
“instituições privadas cujo representante legal, no ato da inscrição, se
autodeclare negro”, e que proponentes podem se inscrever como pessoas físicas.
Portanto, segundo a
lógica da burocracia, o equívoco partiu do proponente que se subjugou a um
branco, em vez de inscrever-se individualmente, livre dos grilhões da opressão
secular... O erro, na realidade, é de quem elaborou o edital, colocando um
entrave inócuo, com efeito contrário, cujo efeito prático foi o alijamento de
proponentes cujos projetos deixaram ser avaliados segundo a qualidade
artística. Como muito bem ponderou o próprio vetado, Irineu Nogueira, o
problema está na concepção do edital que, “no afã de fazer uma reparação
histórica, não tomou os cuidados para redigir o projeto (edital) com
cuidado”.
A mesma ponderação
teve o juiz da 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão, José Carlos do Vale
Madeira, que deferiu o pedido de suspensão dos editais voltados exclusivamente
para produtores e criadores negros, levados a cabo pela Fundação Nacional de
Artes - Funarte, Fundação Biblioteca Nacional - FBN e Agência Nacional de
Cinema – ANCINE. Na ação, o juiz entende que “embora o Estado tenha o dever de
fomentar medidas administrativas com feição político-afirmativa, oferecendo, por
assim dizer, tratamento preferencial a grupos historicamente discriminados da
sociedade brasileira, quais sejam, negros, índios e pobres, não se pode olvidar
que estas medidas (...) não podem se sobrepor aos parâmetros éticos do Direito,
sob pena de subversão aos princípios da isonomia, da razoabilidade e da
moralidade administrativa”. Dentre as consequências de sua subversão, ainda nas
palavras do juiz federal, está a “estruturação de guetos culturais, que
promovem, por intermédio de ações com o timbre da exclusividade, o isolamento
dos negros, colocando-os em compartimentos segregacionistas, ou seja, que não
possam ser compartilhados por outras etnias”, abrindo “um acintoso e perigoso
espectro de desigualdade racial”.
Em momento algum o
juiz federal se colocou contrário à reparação de injustiças históricas
cometidas contra determinados segmentos da sociedade brasileira. Àqueles que
tiverem interesse de ler a íntegra da decisão, verificarão que o magistrado
estabelece uma clara diferença entre o sistema de cotas raciais para o ingresso
nas universidades ou nos concursos públicos, e o critério exclusivista proposto
pelo Ministério da Cultura. Fica claro, na leitura da decisão, que o foco recai
sobre o campo cultural, e a correta
interpretação de que não se pode outorgar apenas aos negros “a tarefa de se
pronunciarem sobre temas de especial relevância no mundo artístico-cultural
brasileiro”. Em outras palavras, ser negro não significa ter samba no pé, ser
branco não significa tocar violino.
No programa “Bom dia,
Ministro” do dia 22 de maio, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, classificou
como “racista” a decisão do juiz José Carlos do Vale Madeira. Segundo o
dicionário Michaelis, racismo é uma “teoria que afirma a superioridade de
certas raças humanas sobre as demais”, donde, por dedução lógica, racista é
aquele indivíduo que acredita em tal teoria. Ainda que o juiz federal não
descarte a existência de raças humanas, chamadas em alguns momentos de
“etnias”, é, no mínimo, temerário acusá-lo de racista. Não há, ao longo da
decisão, qualquer referência ou insinuação de inferioridade da população negra
brasileira, pelo contrário, instiga-se ao diálogo cultural, à abertura das
fronteiras simbólicas.
A utilização da
categoria “racista” funciona, claro, como uma acusação. A função da acusação é
deslegitimar as opiniões do acusado. O “crime” do juiz federal foi colocar-se
contrário a uma ação do Ministério da Cultura que se insere numa política
pública racialista e irracional, que produz injustiças como as constatadas no
caso do Edital da Funarte. O “racista” de hoje é o “terrorista” do Brasil dos
anos de chumbo, o “comunista” dos Estados Unidos na época do macarthismo.
Pensar diferente virou crime. Ou melhor: pensar, pura e simplesmente.
No embate virtual
entre o juiz federal e a ministra da Cultura, das duas, uma: ou o juiz é
racista e merece ser julgado por haver cometido crime previsto pela
Constituição Federal, ou a ministra equivocou-se em sua avaliação e deve
retratar-se publicamente. Em tempo de caça às bruxas, quem é a personagem vilã
desta estória?
Também disponível em : http://www.culturaemercado.com.br
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