A
lei de incentivo fiscal à cultura, conhecida como Lei Rouanet, foi concebida
para democratizar o acesso ao financiamento às atividades culturais com pouco
ou nenhum apelo comercial. Visava, portanto, a valorização da diversidade
cultural, refletida no caleidoscópio de manifestações artísticas encontradas
nas cinco regiões do país, nos mais de cinco mil municípios brasileiros.
Tratava, ao mesmo tempo, de inclusão social, geração de emprego e antecipava
aquilo que mais tarde ficou conhecido como “cidadania cultural”. Na prática,
contudo, a teoria vem sendo outra: a maior parte dos recursos captados está
concentrada no eixo Rio- São Paulo e contempla produções que, por conta de seu
grande apelo comercial, poderiam prescindir da ajuda de recursos públicos, seriam
autossustentáveis. Daí a discussão de
reforma da Lei Rouanet e a proposta do Procultura que prevê, dentre outras
mudanças, o fim da isenção fiscal total, como ocorre em áreas como teatro e
dança, obrigando as empresas a colocar dinheiro “limpo”, e o escalonamento dos
percentuais de isenção a partir de critérios objetivos, dentre eles, a
distribuição geográfica.
A
última polêmica envolvendo o atual formato de incentivo à cultura via renúncia
fiscal aconteceu nesta semana, quando a ministra Marta Suplicy, passando por
cima da decisão da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC, instância
do MinC responsável pela análise dos projetos que pretendem captar recursos via
Lei Rouanet, autorizou a captação de mais de R$ 7 milhões para a realização de
desfiles de moda em Paris, Nova Iorque e São Paulo. Um dos projetos, do
estilista Pedro Lourenço, foi rejeitado porque, segundo a CNIC, não deixava
claro como democratizar o acesso da população ao desfile, exatamente um dos
critérios a ser utilizado na tão propalada “democratização cultural” do governo
federal. Também foi questionado o valor solicitado, considerado alto mesmo em
se tratando de evento de moda no exterior.
Não
se trata, aqui, de desmerecer o trabalho dos estilistas, da qualidade de suas
peças, da questionável legitimidade da apresentação de projetos para captação
de recursos públicos por parte de artistas/profissionais já estabelecidos em
seu campo e, assim, capazes de “levantar” recursos sem a ajuda do Estado
brasileiro, dos valores solicitados, tampouco insinuar uma suposta amizade da
ministra da Cultura com a família do estilista Pedro Lourenço, conforme
pergunta capciosa da repórter do jornal O Globo. Ainda que seja lícito, por
exemplo, questionarmos onde está a democratização do acesso à cultura se as
peças dos três estilistas, devido a seu preço, não podem ser adquiridas pela
maior parte da população brasileira. Tudo isso deve ser discutido, mas o que me
chamou mais a atenção neste episódio foi a forma como o processo foi conduzido.
Explico.
Questionada,
pela repórter do jornal O Globo, por que ignorou a decisão da CNIC e aprovou o
projeto do estilista Pedro Lourenço, a ministra afirmou:
A votação do conselho foi muito
estranha: sete votos contra o projeto e sete abstenções. Quando vi isso, percebi
que eles não tinham entendido o conceito que o governo está valorizando muito
agora, o conceito de soft Power, que é uma das diretrizes nacionais. (...)
A
repórter, em seguida, ponderou que a CNIC existe para fazer uma avaliação e
emitir um parecer a respeito, ao que a ministra respondeu:
Sim, mas, quando eu soube que
eles tinham vetado os desfiles pensei: “Ai, meu Deus! Eles não entenderam o
conceito de moda como cultura. Não conhecem as exposições feitas no Museu
D’Orsai, no Museu do Louvre... Não têm visão ampla sobre a nova imagem que
queremos construir para o Brasil”. Chanel é um símbolo. Dior também. Podemos
ter os nossos.
Em
primeiro lugar, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura é composta, dentre
outros, por membros das diversas áreas artísticas alvo de ação do MinC,
incluída, recentemente, a moda, oriundos dos respectivos Colegiados Setoriais,
democraticamente constituídos. A CNIC,
portanto, deveria ter autonomia e independência “ampla e irrestrita” para
decidir pela aprovação ou rejeição de qualquer dos milhares de projetos
apresentados anualmente. A interferência da ministra, ainda que legal, é
ilegítima.
Em
segundo lugar, a ministra diminui e mesmo menospreza a capacidade intelectual
de análise dos membros da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura ao afirmar
que “Eles não entenderam o conceito de moda como cultura”. Talvez eles tenham
um entendimento diferente do da ministra, o que, obviamente, é bem diferente de
“não entender”. Aparentemente, os motivos que levaram à rejeição do projeto de
Pedro Lourenço têm a ver com questões objetivas, a ausência de estratégias de
acesso à população brasileira ao produto/serviço proposto, não com uma
interpretação incorreta do que seja cultura, ou moda, ou moda como cultura.
Ao
infantilizar os membros da CNIC, apesar de maiores de idade e vacinados,
atropelando a decisão colegiada, a ministra simplesmente coloca em xeque a
própria existência da instância deliberativa. De que adianta passar horas
analisando projetos se, por decisão superior unilateral, os mesmos são
aprovados ou rejeitados? Se assim é, melhor que se economize em passagens e
diárias, já que as reuniões ocorrem em Brasília e os membros da Comissão vêm
dos mais diferentes pontos do país.
A
atitude da ministra foi autoritária, prepotente, arrogante. Típica de uma
sociedade democrática apenas no papel, mas que carrega ainda o ranço da
hierarquia intransponível estabelecida entre senhores e escravos, da ausência
de diálogo porque o diálogo coloca em pé de igualdade os interlocutores, do “você
sabe com quem está falando” (que amplia a desigualdade) e não do “quem você
pensa que é” (que achata a diferença), do “manda quem pode, obedece quem tem
juízo”, do “O Estado sou eu”. Resta saber qual será a reação dos membros da
CNIC, se é que vai haver alguma.
Estamos
diante da volta do Poder Moderador, instituído na Constituição de 1824, durante
o Império de D. Pedro I? Estamos diante de um Estado esquizofrênico, uma
Monarquia republicana ou uma República monarquista?
Também disponível em : http://www.culturaemercado.com.br
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