Recentemente, o canal de
esportes ESPN Brasil exibiu um documentário tratando da apropriação política do
futebol pelas ditaduras militares sul-americanas. No capítulo sobre o Uruguai,
fiquei sabendo que uma das formas que a sociedade civil tinha de protestar
pacificamente era através do hino nacional.
Nos jogos de futebol no Estádio Centenário, em Montevidéu, quando as
equipes se perfilavam para a execução dos hinos nacionais, os torcedores uruguaios
cantavam mais alto e forte o refrão que diz “Tremei, tiranos”, numa óbvia
alusão aos torturadores cucarachos de plantão. O efeito era mais simbólico que
prático, a população deixava clara sua insatisfação e, para bom entendedor,
meia palavra ou um único refrão bastam.
O grito a plenos pulmões
estabelecia uma comunhão entre os espectadores presentes ao estádio, bem como
entre os espectadores e a seleção nacional. A seleção nacional era do povo, não
dos militares, que a haviam se apropriado indevidamente. As palavras do refrão
estavam cheias de significado, carregavam o peso da identidade nacional
usurpada, eram o canal da autoafirmação. Isso foi nos idos dos anos 1970 e
1980. Corta para o Brasil dos dias de hoje.
Em 2013, durante a Copa das
Confederações, torneio preparatório para a Copa do Mundo de futebol a ser
realizada no país no ano seguinte, numa demonstração espontânea e emocionante,
a torcida brasileira cantou, junto com os jogadores, à capela, o hino nacional
que havia sido abruptamente interrompido. Desde então o ritual se repete: hino
iniciado, hino interrompido, jogadores e torcida irmanados numa só voz a
cantá-lo até o fim. Pela televisão, não é incomum ver torcedores chorando,
emocionados. Ao longo dos jogos, também
virou moda o cântico “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. A
comunhão uruguaia se repetia em terras brasileiras. Mas será o mesmo fenômeno?
Na Copa do Mundo que termina no
próximo final de semana testemunhamos um fenômeno curioso. Brasileiros de todas
as idades, gêneros, cores, religiões, paixões clubísticas, profissões,
sotaques, correntes político-ideológicas, gritavam aos quatro ventos o orgulho
de ser brasileiro “com muito orgulho, com muito amor” para, em seguida ou
seguindo o hino nacional da seleção adversária, entoar uma sonora vaia em total
desrespeito, falta de compostura, espírito esportivo e civilidade. Estariam os
brasileiros presentes ao estádio orgulhosos da má-educação e falta do chamado
“fair play”? De que se orgulhavam os brasileiros?
O genial Nelson Rodrigues dizia
que “no Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio”, mas, será que devemos
compactuar com este tipo de comportamento? O próprio hino era gritado, e não
cantado, pelos jogadores e boa parte da torcida, o que nos leva a pensar se
eles realmente estavam cientes do significado das palavras que saíam de suas
bocas, ou se havia se transformado num discurso vazio, como que um vômito que
precisa ser expelido porque incômodo. Havia raiva nos semblantes de muitos
jogadores, não amor. Pareciam gladiadores prestes a irem ao campo de batalha
para matar ou morrer, esmagar o adversário, trucidá-lo.
Este triste espetáculo me fez
lembrar novamente da “flor de obsessão” e seu “complexo de vira-latas”, que
assim o definia:
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em
que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em
todos os setores e, sobretudo, no futebol. Na já citada vergonha de 50 (a Copa
do Mundo), éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem
do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito
simples: — porque Obdulio (Varela, jogador uruguaio) nos tratou a pontapés,
como se vira-latas fôssemos.
Aparentemente, para uma nação se autoafirmar e fugir dos
pontapés alheios, pelo menos no Brasil, é fundamental denegrir, desprezar,
menosprezar, rebaixar os outros. As comparações, sempre a nosso favor, são
eternas, ainda que o inimigo não as faça ou não dê tanto importância quando se
trata de um mero jogo de futebol. Rebaixamos o outro porque somos inseguros,
porque não temos certeza de nossas qualidades enquanto povo que carrega uma
identidade própria, um rosto reconhecido mundo afora, porque estamos sempre
medindo nossos defeitos (mínimos) e qualidades (máximas) pela régua dos outros.
Só isso pode explicar a obsessão com os argentinos, ódio e desprezo que vai
muito além da sadia rivalidade esportiva, fomentados pelos chamados “formadores
de opinião”.
Diga-se de passagem, que tal ódio e desprezo são unilaterais,
não vemos nos meios de comunicação portenhos, especialmente aqueles do grande
grupo midiático Clarín (equivalente à rede Globo no Brasil), o mesmo
comportamento. Muito pelo contrário, há fascínio e respeito. Antes que os
idiotas da objetividade vociferem que jornais como o Olé façam troça com a desgraça de Pindorama, afirmo simplesmente
que a exceção confirma a regra.
Daí a insegurança, porque somos eternos vira-latas, contentes
com a desgraça alheia porque incompetentes e ineptos para alcançar o sucesso.
Porque elegemos políticos corruptos, porque somos corruptos, porque damos
carteirada, porque sonegamos imposto, porque pagamos planos de saúde, escola
particular e segurança privada diante da apropriação do Estado por senhores
feudais e seus asseclas e achamos que não temos nada a ver com isso. “O Rio de
Janeiro é violento, mas a única vez em que fui assaltado foi no aeroporto de
Paris”. Sobra rancor, cinismo, pusilanimidade, falta vergonha na cara.
Enquanto a seleção brasileira era massacrada pelo blitzkrieg
alemão, as câmeras focalizavam torcedores chorando desesperadamente. Chorava-se
porque o último bastião do orgulho nacional era vilipendiado, não tínhamos mais
do que nos orgulhar, nem mesmo o maior artilheiro de todas as Copas. O choro
era por conta do choque de realidade, pelo fim trágico do sonho e o retorno às
mazelas do dia-a-dia, o desrespeito cotidiano à cidadania pelas autoridades
públicas e pelos concidadãos que ajudam a destruir o sentimento de
pertencimento, comunhão e solidariedade quando cospem no chão, entopem os
bueiros de lixo, cortam os cruzamentos das avenidas, tentam levar vantagem em tudo,
dão o jeitinho brasileiro, extorquem turistas com preços abusivos em
restaurantes e nas praias e nas corridas de táxi. Afinal, o mito do homem
cordial é apenas um mito.
Pátria em chuteiras? A seleção de futebol reflete a
sociedade? A sociedade brasileira reflete sua seleção de futebol? Em 1998, o
então técnico do Palmeiras, Luis Felipe Scolari, o Felipão, elogiou o ditador chileno Augusto Pinochet, preso em Londres,
na Inglaterra. Segundo reportagem veiculada à época pela Agência Folha, em
entrevista à Rádio Jovem Pan:
Scolari disse que "Pinochet fez muita
coisa boa também". "Ajeitou muitas coisas lá (no Chile). O pessoal
estava meio desajeitado. Ele pode ter feito uma ou outra retaliaçãozinha aqui e
ali, mas fez muito mais do que não fez", afirmou o treinador. Sobre os métodos do ditador chileno,
que resultaram em tortura e morte de milhares de pessoas, Scolari disse que
"há determinados momentos que ou o pessoal se ajeita ou a anarquia toma
conta".
Esta
não é a minha pátria, talvez seja a dos torcedores que foram ao estádio vaiar o
hino das seleções adversárias, quer dizer, para eles, inimigas mortais. Talvez
a seleção brasileira reflita nosso caráter, talvez a goleada impiedosa imposta
pelos teutões tenha servido para confirmar nossa vocação para vira-latas e
nossa veia autoritária, o “você sabe com quem está falando?”.
Para
mim, seguindo as palavras de um conhecido jornalista esportivo, o futebol
continua sendo a coisa mais importante dentre as menos importantes.
Pão e
circo? Não, obrigado.
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