O fetiche dos livros


Diz-se que o povo judeu é o "povo do livro". Sergio Buarque de Holanda, em algum lugar de Raízes do Brasil, diz que "o amor bizantino aos livros" da intelectualidade brasileira teria origem em tradições sefaraditas - judeus oriundos da Península Ibérica e norte da África. Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, afirma que é possível atribuir "à influência israelita muito do mercantilismo no caráter e nas tendências do português; mas também é justo que lhes atribuamos o excesso oposto: o bacharelismo. O legalismo. O misticismo jurídico. O próprio anel no dedo, com rubi ou esmeralda, do bacharel ou do doutor brasileiro, parece-nos reminiscência oriental, de sabor oriental". A fuga para a carreira intelectual seria uma tentativa de fugir ao estigma de povo corrompido pela vida urbana. 

Verdade ou não, “tradição inventada” ou não, o fato é que sempre estive cercado de livros e leitores vorazes. Na casa de meus pais, um confortável apartamento de classe média no bairro carioca das Laranjeiras, havia um cômodo destinado à biblioteca. Eu nunca me atrevi a ler quaisquer daqueles livros - não que houvesse proibição para tal – contentando-me em simplesmente ler os títulos. Havia muita literatura, mas, sobretudo, obras políticas. Essa biblioteca se transformou no meu quarto quando eu tinha uns quinze anos.  Liam-se dois jornais, diariamente, O Globo e A Folha de São Paulo. As notícias do cotidiano eram importantes, embora o interesse maior fosse pelos articulistas de qualidade que frequentavam suas páginas. Eu, particularmente, naquele tempo, curtia mesmo era o suplemento esportivo.

Lembro-me que minha mãe tentou, insistiu, esperneou, desesperou-se para que eu lesse Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato, sem sucesso. Eu gostava de ler gibis e, adolescente, era fanático da revista Mad. O meu gosto por leitura “de verdade”, literatura “séria”, veio mais tarde, já na época da faculdade de Ciências Sociais. Aí, a coisa degringolou. Havia achado meu lugar no mundo. Passei a frequentar os sebos do centro da cidade, adorava sentir o cheiro das páginas envelhecidas dos livros que se amontoavam, aparentemente, sem qualquer ordem e lógica. Fiz amizade com os donos, adorava quando era recebido com um “olha, chegaram alguns que eu acho que você vai gostar”. Formei a minha própria biblioteca, comprava livros aos borbotões, um verdadeiro bibliófilo. Deles, tenho ciúmes.

Desde então, tenho sido apresentado, aos poucos, a conta-gotas, àqueles que me deleitam, me fazem sorrir sozinho, ter um prazer quase físico ao ler aquele “montão de amontoado de muita coisa escrita”. Machado de Assis (sim, eu li na escola, mas li obrigado, então não conta), João Ubaldo Ribeiro, Nelson Rodrigues, Luis Fernando Veríssimo, Carlos Heitor Cony, José Saramago, Fernando Sabino, Rubem Fonseca, Philip Roth, Rubem Braga, Martha Medeiros, Ruy Castro, Kafka, Orwell, Dostoievski, Tchekhov. Sem falar dos antropólogos e sociólogos que me forjaram intelectualmente. 

Ler, hoje, em dia, é um ato de resistência. No início deste mês, a Secretaria de Educação do estado de Rondônia emitiu um memorando-circular às coordenadorias regionais solicitando o recolhimento de quarenta e três livros “tendo em vista conterem conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”. Constam, da famigerada lista negra, para meu orgulhoso subversivo, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Kafka, Mário de Andrade, Machado de Assis e Euclides da Cunha.  

Àqueles com pendor autoritário e preguiça intelectual, a leitura lhes parece perigoso porque abala verdades absolutas, ativa a criatividade, coloca-nos em perspectiva, estimula o pensamento crítico, a tolerância e o convívio com o “outro” porque nos confronta com novas maneiras de viver o mundo, novos sentidos e significados dados à experiência humana.

Pensar dá trabalho, mas liberta. Compreendo, no entanto, esse desejo incontrolável de censurar ideias alheias, porque é aconchegante a escolha da impermeabilidade, da idealização arrogante de um mundo construído sobre certezas imortais, imemoriais, eternas, infinitas, a-históricas, da “constância das pedras”, como dizia Sartre.  

Cada um com seu fetiche. 



Comentários

Luiz Felipe Oiticica Machado disse…
Nada menos do que brilhante, Marcelo. Brilhante e, ao mesmo tempo, saboroso, carinhoso. Identifiquei-me com você, porque também sou assim, embora minha paixão pelos livros tenha começado bem mais cedo do que a sua. Não foi necessário que meus pais insistissem comigo para ler Reinações de Narizinho. Li toda a obra de Monteiro Lobato para crianças, praticamente devorando os livros. E vieram outras paixões: os livros de Tarzan (Edgard Rice Burroughs), os romances da coleção Menina e Moça (eram ótimos), mais tarde as histórias de Arsène Lupin (do colonialista Maurice Leblanc - aprendi com ele o que é ser colonialista) e por aí fui, emendando com os grandes escritores brasileiros e estrangeiros. Até mergulhar na política e nos livros marxistas, mas aí já é outra história. Adorei esta sua memória. Forte abraço.
Thais Linhares disse…
Eu, aqui. Fazendo um ato de resistência.
Antonio Matos disse…
Muito bom Marcelo! A análise sobre a imagem dos livros na biblioteca e contentar-se em ler somente a capa foi demais. No entanto, observo a sua recaída em "lista negra" ao registrar a atitude da Secretaria de Educação de Rondônia.
Abraços.

Antonio Matos,em Porto Alegre.