Na minha adolescência, tive a oportunidade de visitar Israel por duas
vezes, ambas na primeira metade da década de 1990. Era estudante de uma escola
judaica da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. As viagens foram organizadas
por instituições sionistas, e tinham por intuito apresentar à juventude
diaspórica a realidade daquele Estado formado após o holocausto judaico da
Segunda Guerra Mundial, e para o qual todo e qualquer judeu tem o direito de
“retornar” caso assim o deseje. Voltar à terra ancestral. Para as organizações
sionistas, ainda que não disposto a deixar a diáspora, todo e qualquer judeu ao
redor do mundo deve conhecer a “terra prometida”, prestar-lhe solidariedade
material ou simbólica, assim como todo muçulmano deve fazer, pelo menos uma vez
na vida, a peregrinação a Meca. Para muitos jovens judeus, a visita a
Israel é um rito de passagem, assim como para outros o destino é a
Disneylândia.
A
equivalência de Israel e Disneylândia tem um motivo. A grande maioria dos
jovens não religiosos e sem interesse por questões políticas realizam a viagem
apenas para se divertir. O roteiro é basicamente o mesmo: visita ao Muro
das Lamentações, com direito a fotos em posição hipócrita de reza (já viram
ateu rezando?), ao Museu da Diáspora, aoMuseu do Holocausto, às Colinas do
Golan, ao Deserto do Neguev e a experiência de tomar um chá com os beduínos, ir
ao Mar Morto e boiar na água sem fazer esforço por conta da altíssima
concentração de sal, a “vivência” de alguns dias num dos kibutzim ainda
existentes em Israel e uma semana num acampamento militar, onde se tem a
oportunidade de atirar com uma arma de verdade.
Além, é
claro, da interação com jovens de outros países hospedados no mesmo local. Para
variar, brasileiros e argentinos, esquecendo sua identidade étnica comum,
atualizavam a rivalidade futebolística e travavam uma guerra particular pelas
meninas. Neste quesito, os argentinos davam de goleada, e os brasileiros
ficavam a ver navios.
Minha
memória afetiva das duas viagens não é das mais significativas. Aparte ter
conhecido parentes por parte de mãe, a “terra prometida” me frustrou quando o
assunto é a construção de minha identidade judaica. Achei os israelenses meio
grosseiros (dizem que o “sabra”, o israelense “da gema”, é duro por natureza),
a comida é medíocre (o melhor falafel que comi até hoje foi em Paris…), é tudo
muito árido, a sociedade é militarizada, o serviço militar é compulsório, não
existe “excesso de contingente”. A memória construída apenas sobre o sofrimento
começava a me incomodar.
Nossos guias,
jovens talvez dez anos mais velhos do que nós, andavam armados, o motorista do
ônibus andava armado. Um dos nossos passeios foi em Hebron, cidade da
Cisjordânia, em que a estrada era rodeada por telas para contenção das pedras
atiradas pelos palestinos. Em momento algum os guias se referiram àquele
território como “ocupado”, e hoje me envergonho de ter feito parte, ainda que
por poucas horas, deste “finca pé” em território ilegalmente ocupado. Para
piorar, na segunda viagem quebrei a perna jogando basquete e tive de
engessá-la, o que, por outro lado, me liberou da experiência desagradável de
ter de apertar o gatilho de uma arma, exatamente naquela semana íamos acampar
com o exército israelense.
Sei lá,
não me senti tocado por esta realidade, minha fantasia era outra. Não encontrei
minhas raízes no solo desértico do Negev, tampouco na neve das colinas do
Golan. Apesar disso, trouxe na bagagem uma bandeira de Israel, que coloquei no
meu quarto. Muitas vezes meu pai, judeu ateu, não sionista, me perguntou o
porquê daquela bandeira estar ali, e eu não sabia responder. Hoje eu sei por
que ela NÃO DEVERIA estar ali, porque minha identidade judaica passa pela
Europa, pelos vilarejos judaicos descritos nos contos de Scholem Aleichem, pelo
humor judaico característico daquela parte do mundo, pela comida judaica
daquela parte do mundo, pela música klezmer que os judeus criaram naquela parte
do mundo, pelas estórias que meus avós judeus da Polônia contavam ao redor da
mesa da sala nos incontáveis lanches nas tardes de domingo.
Sou um
judeu da diáspora, com muito orgulho. Na verdade, questiono mesmo este conceito
de “diáspora”. Como bem coloca o antropólogo norte-americano James
Clifford, as culturas diaspóricas não necessitam de uma representação exclusiva
e permanente de um “lar original”. Privilegia-se a multilocalidade dos laços
sociais. Diz ele:
As conexões transnacionais que ligam as diásporas não precisam
estar articuladas primariamente através de um lar ancestral real ou simbólico
(…). Descentradas, as conexões laterais [transnacionais] podem ser tão
importantes quanto aquelas formadas ao redor de uma teleologia da
origem/retorno. E a história compartilhada de um deslocamento contínuo, do
sofrimento, adaptação e resistência pode ser tão importante quanto a projeção
de uma origem específica.
Há muita
confusão quando se trata de definir o que é judaísmo, ou melhor, o que é a
identidade judaica. A partir da criação do Estado de Israel, a identidade
judaica em qualquer parte do mundo passou a associar-se, geográfica e
simbolicamente, àquele território. A diversidade cultural interna ao judaísmo
foi reduzida a um espaço físico que é possível percorrer em algumas horas. A
submissão a um lugar físico é a subestimação da capacidade humana de produzir
cultura; o mesmo ocorre, analogamente, aos que defendem a relação inexorável de
negros fora do continente africano com este continente, como se a cultura
passasse literalmente pelo sangue. O que, diga-se de passagem, só serve aos
racialistas e, por tabela, racistas de plantão. Prefiro a lateralidade de que
nos fala Clifford.
Ser
judeu não é o mesmo que ser israelense, e nem todo israelense é judeu, a
despeito da cidadania de segunda classe exercida por árabes-israelenses ou por
judeus de pele negra discriminados por seus pares originários da Europa
Central, de pele e olhos claros. Daí que o exercício da identidade judaica não
implica, necessariamente, o exercício de defesa de toda e qualquer posição do
Estado de Israel, seja em que campo for.
Muito
desta falsa equivalência é culpa dos próprios judeus da “diáspora”, que se
alinham imediatamente aos ditames das políticas interna e externa israelense,
acríticos, crentes de que tudo que parta do Knesset (o parlamento
israelense) é “bom para os judeus”, amém. Muitos judeus diaspóricos se
interessam mais pelo que acontece no Oriente Médio do que no seu cotidiano.
Veja-se, por exemplo, o número ínfimo de cartas de leitores judeus em jornais
de grande circulação, como O Globo, quando o assunto tratado é a corrupção
ou violência endêmica em nosso país, em comparação às indefectíveis cartas de
leitores judeus em defesa das ações militaristas israelenses nos territórios
ocupados. Seria o complexo de gueto falando mais alto?
Não
preciso de Israel para ser judeu e não acredito que a existência no presente e
no futuro de nós, judeus, dependa da existência de um Estado judeu, argumento
utilizado por muitos que defendem a defesa militar israelense por quaisquer
meios, que justificam o fim. Não aceito a justificativa de que o holocausto
judaico na Segunda Guerra Mundial é o exemplo claro de que apenas um lar
nacional única e exclusivamente judaico seja capaz de proteger a etnia da
extinção.
A dor vivida pelos judeus, na
visão etnocêntrica, reproduzida nas gerações futuras através de narrativas e
monumentos, é incomensurável e acima de qualquer dor que outro grupo étnico
possa ter sofrido, e justifica qualquer ação que sirva para protegê-los de uma
nova tragédia. Certa vez, ouvi de um sobrevivente de campo de concentração que
não há comparação entre o genocídio judaico e os genocídios praticados
atualmente nos países africanos, por exemplo, em Ruanda, onde tutsis e hutus se
digladiaram sob as vistas grossas das ex-potências coloniais. Como este senhor
ousa qualificar o sofrimento alheio? Será pelo número mágico? Seis milhões? O
genial Woody Allen coloca bem a questão, num diálogo de Desconstruindo
Harry (tradução livre):
– Você
se importa com o Holocausto ou acha que ele não existiu?
– Não,
só eu sei que perdemos seis milhões, mas o mais apavorante é saber que recordes
são feitos para serem quebrados.
O holocausto judaico não é inexplicável, e
não é explicável pela maldade latente dos alemães. Sem dúvida, o componente
antissemita estava presente, mas, conforme demonstrado por diversos pensadores
contemporâneos, dentre os quais insuspeitos judeus (seriam judeus
antissemitas Hannah Arendt, Raul Hilberg e Zygmunt Bauman?), uma
série de características do massacre está relacionada à modernidade, à
burocratização do Estado e à “industrialização da morte”, sofrida também por
dirigentes políticos, doentes mentais, ciganos, eslavos, “subversivos” de um
modo geral. Práticas sociais genocidas, conforme descritas pelo sociólogo
argentino Daniel Feierstein (outro judeu antissemita?), estão presentes tanto
na Segunda Guerra Mundial quanto durante o Processo de Reorganização Nacional
imposto pela ditadura argentina a partir de 1976. Genocídio é genocídio, e
ponto final.
A sacralização do genocídio judaico
permite ações que vemos atualmente na televisão, o esmagamento da população
palestina em Gaza, transformada em campo de concentração, isolada do resto
do mundo. Destruição da infraestrutura, de milhares de casas, a morte de
centenas de civis, famílias destroçadas, crianças torturadas em interrogatórios
ilegais conforme descrito por advogados israelenses. Não, não são a exceção,
não são o efeito colateral de uma guerra suja. São vítimas, sim, de práticas
sociais genocidas, que visam, no final do processo, ao aniquilamento físico do
grupo.
Recuso-me a acumpliciar-me com esta
agressão. O
exército israelense não me representa, o governo ultranacionalista não me
representa. Os assentados ilegalmente são meus inimigos.
Eu,
judeu brasileiro, digo: ACABEM COM A OCUPAÇÃO!!!
Também disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/
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