Não conheço quem
afirme gostar de tomar vacina, que sinta prazer em ter introduzida uma agulha,
mais ou menos grossa, em sua pele. Talvez os viciados, e mesmo esses devem
sentir menos o prazer da agulha em si do que as substâncias que invadem o corpo
através dela. Desde o nascimento, entretanto, encaramos o ritual de seguir ao
posto de saúde, sentar no colo da mãe ou do pai, ouvir da enfermeira que “não
vai doer” (pimenta nos olhos dos outros), chorar antes, durante e após a
picada, ouvir novamente a enfermeira, desta vez dizendo “pronto, nem doeu, eu
te disse”, enxugar as lágrimas que rolam como cascata, levantar e ir embora,
observando a cara de terror das demais crianças que aguardam na fila a vez do
martírio. O ritual é reproduzido, com mais ou menos choro, até a velhice
(“terceira idade” é o cacete, como diria o colunista). De acordo com o
calendário nacional de vacinação, publicado no portal do Ministério da Saúde,
do nascimento até os cinco anos de idade incompletos, cada brasileiro deve
tomar nada menos do que vinte e cinco vacinas. Logo ao nascer, já são duas: BCG
(contra tuberculose) e Hepatite B. Este número aumenta se considerarmos que
algumas vacinas estão disponíveis apenas em clinicas privadas. Desconheço pais
que tenham se recusado a vacinar seus filhos recém-nascidos.
Eis que li nos jornais, já há algum tempo, que, nos Estados Unidos, um surto de sarampo, iniciado na
Disneylândia da California, espalhou-se por outros dezessete estados
contaminando nada menos do que cento e vinte pessoas. Soubemos, então, que grupos
de pais contrários à vacinação, sob o argumento de que a vacina seria pouco
segura e eficaz, correndo mesmo o risco de desenvolver autismo nas crianças
(não comprovado cientificamente), estariam promovendo as chamadas “festas do
sarampo”, encontros entre crianças saudáveis e infectadas para que as que ainda
não pegaram a doença possam se contaminar e, assim, teoricamente, ficar imunes
ao produzir anticorpos. O Departamento de Saúde Pública da Califórnia alertou
as famílias para os perigos que a doença traz, podendo levar à pneumonia, edema
cerebral e, no limite, à morte. O estado da Califórnia é um dos vinte estados
norte-americanos que aceita determinadas justificativas para a não vacinação
dos filhos, como motivação religiosa ou crenças pessoais. O sarampo, segundo estimativas da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), no ano 2000
teria causado cerca de 30 a
40 milhões de casos no mundo, com 770 mil óbitos. No Brasil, foi sempre a
segunda causa de morte por doença infecciosa, perdendo somente para a diarreia.
Em 2011, também
nos Estados Unidos, só que no estado do Tennessee, as autoridades
governamentais tiveram de ameaçar legalmente pais que compravam e vendiam,
voluntariamente, pirulitos contaminados com varicela (catapora) com o intuito
de transmitir propositadamente a doença aos filhos sob o mesmo argumento
utilizado pelos promotores das “festas do sarampo”. No Facebook, era possível
achar uma festa perto de sua casa através de grupos como o “Find a pox party
near you” (“Encontre uma festa da catapora perto de você”). À época, o então procurador-geral do estado afirmou que a
prática de enviar vírus e bactérias pelo correio é crime federal nos mesmos
moldes que o envio de substâncias usadas em ataques biológicos, como o antraz.
Sempre
fui adepto fervoroso da alopatia até o nascimento do meu filho, quando fui
apresentado à homeopatia como método “alternativo” de tratamento. Desde então,
conseguimos, eu e minha esposa, equilibrar os dois métodos com grande sucesso.
A alergista pediátrica do nosso rebento é irrestritamente favorável à
vacinação, inclusive contra o vírus influenza, ao passo que o homeopata diz não
ser necessário vacinar contra este vírus específico, embora não contraindique
explicitamente. Resolvemos unir forças. Parece que mesmo oficialmente medicina
e homeopatia não são excludentes, conforme a Associação Médica Homeopática
Brasileira que, em seu sítio na Internet, informa que tem adotado oficialmente, para credenciamento de
especialistas em Homeopatia, uma posição consoante com os órgãos oficiais de
saúde quanto às orientações do Programa Nacional de Imunizações. Entretanto, segundo
a AMHB, “existem profissionais resistentes à indicação das vacinas preconizadas
na infância e que já tem uso consagrado no Brasil e no mundo no controle e
erradicação de graves doenças epidêmicas como a varíola, paralisia infantil,
sarampo e outras, como Hannemann já havia salientado em relação à varíola há
quase 200 anos. Trata-se, portanto, de conduta médica que deve ser revista por
estes profissionais, à luz de uma coerência científica e da responsabilidade
profissional”.
Em
1904, estourou aquela que ficou conhecida como a Revolta da Vacina, quando a
população reagiu violentamente à campanha de vacinação obrigatória imposta pelo
governo federal para combater a epidemia de varíola que assolava a cidade do
Rio de Janeiro. Embora seu objetivo
fosse positivo, ela foi aplicada de forma autoritária e violenta. Em alguns
casos, os agentes sanitários invadiam as casas e vacinavam as pessoas à força,
provocando revolta. Essa recusa em ser vacinado acontecia, pois grande parte
das pessoas não conhecia o que era uma vacina e tinha medo de seus efeitos. A
reação popular levou o governo a suspender a obrigatoriedade da vacina e a
declarar estado de sítio. A rebelião foi contida, deixando 30 mortos e 110
feridos. Centenas de pessoas foram presas e, muitas delas, enviadas para o
Acre.
Mais de um século depois, estamos diante novamente de
uma Revolta da Vacina. À diferença da primeira, entretanto, está a enxurrada de
informações a respeito dos benefícios e supostos malefícios da vacina, sem
falarmos no inquestionável avanço científico com relação aos métodos de
prevenção de doenças. Ou seja, só não se informa quem não quer. Mas talvez
resida aí o problema. A quantidade de informação não significa qualidade de
informação, qualquer pessoa pode publicar o que bem entender no território
livre da Internet. Não é à toa que os médicos desaconselham seus pacientes a
procurar no “Dr. Google” informações sobre doenças e tratamentos. O Estado
brasileiro também deve exercer seu papel constitucional de esclarecer a
população com informações corretas e dirimir quaisquer dúvidas que levantem
suspeitas com relação à validade do Programa Nacional de Imunização.
Retomo um dos
argumentos utilizados pelos pais “antivacinistas”, aquele que diz que a criança
saudável adquiriria anticorpos ao travar contato com uma criança infectada,
aumentando seu sistema de defesa. É inacreditável que um pai coloque em risco a
vida de seu filho propositalmente, ainda que, teoricamente, caso não morra, a
criança saia fortalecida, de acordo com a máxima “o que não mata engorda” (justificativa
de quem adoro um torresmo, mesmo apresentando altos níveis de colesterol).
Segundo o infectologista Guido Carlos Levi, autor de Recusa de vacinas: causas e consequências,
"O argumento de que a imunidade natural produzida pela própria doença é superior àquela produzida pela vacina é bastante fácil de contraditar. Em primeiro lugar, vem o risco inerente à aquisição das doenças. Quem em sã consciência haveria de correr o risco de seu filho ser vitimado por meningite, pólio, difteria, sarampo, coqueluche ou outras doenças potencialmente muito graves, até fatais, sabendo que isso poderia ser evitado por uma simples vacina? Em segundo lugar, a maioria das vacinas atuais produz imunidade duradoura e eficiente. Em alguns casos, os níveis de anticorpos são até mais elevados do que os produzidos pela doença, como é o caso da vacina HPV. Em outros, como varicela, sarampo, caxumba e coqueluche, realmente a imunidade após a primeira dose da vacina pode ser mais baixa e transitória que após a infecção natural. No entanto, os esquemas vacinais atuais preveem, para esse tipo de vacinas, repetição suficiente para reduzir a taxas muito baixas as falhas primárias, quando não há resposta imunológica após sua administração, ou as falhas secundárias, quando a proteção cai com o tempo, necessitando de um reforço para reavivá-la."
"O argumento de que a imunidade natural produzida pela própria doença é superior àquela produzida pela vacina é bastante fácil de contraditar. Em primeiro lugar, vem o risco inerente à aquisição das doenças. Quem em sã consciência haveria de correr o risco de seu filho ser vitimado por meningite, pólio, difteria, sarampo, coqueluche ou outras doenças potencialmente muito graves, até fatais, sabendo que isso poderia ser evitado por uma simples vacina? Em segundo lugar, a maioria das vacinas atuais produz imunidade duradoura e eficiente. Em alguns casos, os níveis de anticorpos são até mais elevados do que os produzidos pela doença, como é o caso da vacina HPV. Em outros, como varicela, sarampo, caxumba e coqueluche, realmente a imunidade após a primeira dose da vacina pode ser mais baixa e transitória que após a infecção natural. No entanto, os esquemas vacinais atuais preveem, para esse tipo de vacinas, repetição suficiente para reduzir a taxas muito baixas as falhas primárias, quando não há resposta imunológica após sua administração, ou as falhas secundárias, quando a proteção cai com o tempo, necessitando de um reforço para reavivá-la."
Os pais são
representantes legais dos seus filhos, não seus donos. O Estatuto da Criança e
do Adolescente, em seu artigo 14, diz que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados
pelas autoridades sanitárias”. Trata-se de questão de saúde pública, e não mero
respeito à liberdade individual de cada pai ou mãe que se acha no direito de
não proteger seu filho de doenças mortíferas. Por mais escabrosa que seja esta
situação, caso a recusa da vacinação afetasse apenas o infeliz filho do casal,
poderíamos aceitar a decisão familiar. Ocorre, no entanto, que a recusa da
vacinação e a possibilidade de infecção reflete na sociedade como um todo,
deixando de dizer respeito ao âmbito privado. Não estamos diante, aqui, do
respeito à diversidade de pensamento, ao multiculturalismo e às benesses da
sociedade pós-moderna, em que a discussão, muitas vezes, fica na esfera
intelectual, filosófica, ainda que descambe para a intolerância com o outro, o
diferente, para a violência física. Estamos diante de uma ameaça real de morte
consequência de desinformação ou má-fé. Uma coisa é não indicar a vacina, como
é o caso de médicos alopatas e homeopatas; outra completamente distinta é a contraindicação,
atitude irresponsável e mesmo criminosa, por colocar em risco populações
inteiras a vírus e bactérias perfeitamente controláveis.
Deus deve estar
orgulhoso dos organizadores das festas do sarampo e da catapora, e daqueles
pais com tino comercial que vendem pirulitos contaminados. Afinal de contas,
não teve nem mesmo a necessidade de ameaçar os filhos de morte, como fez a
Abrão, os pais levaram-nos voluntariamente ao altar do sacrifício. Admirável
mundo velho.
Também disponível em: www.webartigos.com/
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