A Praça São Salvador, no bairro carioca de
Laranjeiras (há quem diga que o CEP é do bairro do Flamengo) é, há alguns anos,
ponto de encontro das mais diferentes tribos da cidade. Depois de anos
abandonada, reduto de assaltantes e crianças de rua viciadas em cola e outras
drogas, mal iluminada, largada à própria sorte, vive momentos de glória. De
segunda a segunda, o movimento é constante. Artistas de rua, circenses, mães
com seus filhos de colo, senhoras acompanhadas de cuidadoras, skatistas, crianças
jogando bola ou simplesmente correndo em volta do histórico chafariz mais do
que centenário fincado no centro do terreno, grupos de amigos tomando cerveja, tocando
violão, pregadores religiosos, todos dividem democraticamente o espaço. A
revitalização começou em 2007, quando um grupo de amigos passou a tocar
clássicos do chorinho, gênero de musica popular e instrumental, nascida no Rio
de Janeiro em meados do século XIX, aboletados no coreto existente na ponta
oposta ao parquinho de areia destinado às crianças. A sessão de chorinho
acontece todos os domingos, acompanhada de uma feirinha de artesanato; aos
sábados, é a vez do samba de roda. A Praça foi reurbanizada, bares foram
reformados e abertos nos arredores, um pequeno supermercado também abriu suas
portas por ali, os imóveis dos prédios do entorno experimentaram uma
valorização expressiva. Ela é, por que não, a representação carioca da ágora
ateniense, local de manifestação da opinião pública, da expressão da cidadania,
da vida democrática, do embate entre diferentes e mesmo oponentes.
Eis que num final de tarde de um sábado
recente estávamos eu, minha esposa e nosso filho de cinco anos na Praça São
Salvador, acompanhados de uma amiga dele da escola e sua mãe. De repente, uma
gritaria chama-nos a atenção e, quando olhamos para trás, um grupo de ciclistas
nus e seminus, com os corpos pintados, com inscrições que não conseguimos ler, chegava
à Praça pela Rua São Salvador, escoltados por um carro da polícia, fazendo
barulho com apitos e gritando alguma coisa que não conseguimos compreender. No
dia seguinte, pelos jornais, soubemos do que se tratava. Era a versão local da
World Naked Bike Ride, traduzida por aqui como Pedalada Pelada. O objetivo da
manifestação é chamar a atenção para a situação de fragilidade e quase
invisibilidade do ciclista, tanto por parte dos motoristas como pelo poder
público. Segundo o blog Vá de bike, a nudez “representa a fragilidade do
ciclista em meio à agressividade do trânsito. Também é uma forma de chamar
atenção para a invisibilidade dos ciclistas nas ruas, que só passam a ser
notados por muitos motoristas, por parte da imprensa e especialmente pelo poder
público ao pedalar sem roupa”. Entretanto, a nudez não era pré-condição para
participação, uma vez que o princípio da WNBR é “o quão nu você ousar”. Em
resumo, a manifestação era pelo pleno exercício da cidadania.
Eu ri, achei graça, quando um dos ciclistas,
nu, desceu de sua bicicleta e correu para beijar uma moça que dava uma oficina
de bambolê. Aparentemente, eram namorados ou coisa que o valha. No fundo, acho
que fiquei um pouco invejoso daquele rapaz, seguro de seu corpo, despido (literalmente)
da repressão moral judaico-cristã tão presente em nossa sociedade, ainda. Isto
apesar de não sentir-me envergonhado de expor meu corpo quando tomo banho com
meu filho ou troco de roupa na sua frente ou, diferente de como fazem os
ortodoxos judeus, faça sexo com minha mulher com a luz acesa sem um pano que
cubra o seu corpo, exceto um pequeno buraco na região da genitália sem o qual, pressupõe-se,
o divertimento (ou dever de ofício, para o religioso) dificilmente ocorrerá. Para
meu filho, inclusive, a manifestação foi mais um episódio pitoresco que
qualquer outra coisa, afinal de contas, não é todo dia que se vê um bando de
gente andando de bicicleta com “pintos” e seios de fora. Ele próprio estava
apropriadamente vestido enquanto fazia suas manobras radicais na sua bicicleta
do Hot Wheels. A mãe de sua colega, por sua vez, utilizando-se de argumentos
legais, do tipo “atentado ao pudor” e “o direito do outro termina quando o meu
começa”, questionou o a manifestação dos peladões, apenas para chocar, segundo
ela.
Eis o ponto central da discussão, o direito
de expressão a todo e qualquer cidadão e grupo componente da sociedade. Numa
sociedade democrática multicultural, o direito de expressar-se não começa nem
termina, simplesmente existe como fato e deve ser protegido pelo poder público,
como aconteceu na manifestação dos ciclistas nus. A polícia, em vez de reprimir,
protegeu o direito da livre expressão daquele grupo de cidadãos, por mais que a
vista não fosse das mais agradáveis para paladares mais ortodoxos. Por mais que
me doa os ouvidos, defendo o direito do indivíduo que prega o Evangelho no
coreto da Praça para quem queira ouvir o que, para regozijo meu, pela
observação da reação de quem passa por ali, é batalha perdida. Defendo o
direito deste indivíduo de discordar da minha opinião, o que não significa, obviamente,
que eu deva me privar de criticá-lo, como a mãe da amiga de meu filho fez, sob
os argumentos que forem, ridicularizando ou não aquele dos quais discordamos.
O multiculturalismo não significa aceitação
acrítica, blasé, daquilo que nos desagrada, mas a compreensão de que a
diversidade cultural é inerentemente conflitiva. A convivência pacífica e
harmônica é uma utopia e, como utopia, inatingível. E isto não é um problema. Manifestações
a favor da Dilma, sim. Manifestações contra a Dilma, sim. “Hay gobierno, soy
contra”, sim também. Por que golpismo? Por que peleguismo? Desqualificar não, ridicularizar
sim. Viva o ridículo, preferível à censura. A rua deve ser profana, não sagrada.
Talvez a discussão deva se concentrar na
definição de limites para a bagunça, necessidade de organizá-la de alguma forma.
Na cidade do Rio de Janeiro, há, ao menos no papel, uma Secretaria Municipal de
Ordem Pública, responsável pela organização do espaço público em favor do
cidadão, garantindo-lhe o direito de ir e vir. Na prática, a teoria é outra. No
Carnaval, expressão pública por natureza, a Praça São Salvador sofre com a
sujeira e a depredação do patrimônio público tombado, mijões por todos os lados;
durante o ano, nos finais de semana, que começa a partir de quinta-feira, o
barulho inferniza a vida dos moradores dos prédios vizinhos que têm
desrespeitado o direito de dormir em paz, a Lei do Silêncio existe por algum
motivo. Um casal de conhecidos, moradores do segundo andar de um prédio de
frente para a Praça, acaba de vender o apartamento porque perdeu a guerra
contra a insônia. Vê-se que o problema não é a justa reivindicação dos amigos
que querem desafogar as pressões do trabalho com um copo de cerveja
estupidamente gelada ou dos artistas que brincam com seus malabares, mas a
impossibilidade de convivência pela total incompetência do poder público de
regulamentar esta convivência, se não harmônica, tácita.
A sacralização do espaço público é o sonho
dos intolerantes, apenas a eles interessa um ambiente asséptico. Cabe ao Estado
proteger este direito fundamental do cidadão, conforme a Constituição Federal, o
de manifestação e de associação, gostemos ou não do que vemos ou ouvimos. Não é
fácil, admito, e meu ethos antropológico tem limites, mas, caso contrário, o
feitiço, eventualmente, virará contra o feiticeiro e o golpe de 1964 parecerá
um passeio no parque.
Também disponível em:
cartamaior.com.br
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