Em meados de 2014, quando Israel lançou uma sangrenta ofensiva contra Gaza, matando civis aos montes, incluindo dezenas de crianças, resolvi escrever um texto em que me posicionava contrariamente à ação. Deixava claro que minha identidade judaica nada tinha a ver com Israel, que minhas duas experiências na chamada Terra Santa em nada contribuíram para com ela me identificar. Criticava a velha retórica usada por muitos judeus de que a defesa incondicional de Israel, a todo e qualquer custo, é a defesa dos judeus, e que a existência de Israel previne de futuros holocaustos. Frisava, acima de tudo, que ser judeu não equivale a ser israelense, equívoco cometido tanto por “nativos” quanto por “forasteiros” especialmente pelo qualificativo do Estado de Israel, “judeu”.
O texto “viralizou”, segundo a linguagem das redes sociais. Fui tomado de surpresa quando abri um site de notícias abertamente “de esquerda” em cuja página inicial se lia “Antropólogo judeu denuncia genocídio de Netanyahu”. Soube que, no Facebook, “Não em meu nome”, título do texto, havia sido compartilhado por milhares de pessoas. Tentei entender o porquê de tamanho impacto, afinal de contas, era apenas mais um texto tratando do aparentemente infindável drama palestino. Uma das principais causas, a meu ver, era o fato de pouquíssimos judeus brasileiros, pessoas físicas e não jurídicas, se posicionarem tão abertamente contra as ações do governo israelense, contra a associação imediata entre identidade nacional e identidade étnica e/ou identidade religiosa.
Sobre os comentários, elogios pela coragem em me expor e por demonstrar que nem todo judeu é um genocida (este elogio não me cheira bem, confunde “judeu” e “israelense”); críticas por expor um assunto “interno”, que deve ser discutido dentro dos muros da comunidade, diria eu, dentro dos muros do gueto intelectual, e, lugar-comum da desqualificação do pensamento crítico a Israel, a acusação de que sou um clássico caso de “self-hating jew”, judeu que se odeia. Para esta crítica, lembro-me do “self-hating jew” por excelência, o cientista político Norman Finkelstein, marginalizado pelo meio acadêmico norte-americano após a publicação de sua obra-prima A indústria do holocausto, que rebatia a acusação com a seguinte questão: ainda que seja verdade, que eu seja um judeu que se odeia, em quê isto muda o quadro atual na Palestina?
Também fui criticado por dar munição aos antissemitas, o que, no meu entender, sugeria autocensura e desonestidade intelectual porque calar é consentir. E, convenhamos, por mais argumentos que se apresentem contra a associação entre Israel e judaísmo, o antissemita será sempre um antissemita. Finalmente, embora não menos importante, é fundamental que se compreenda que nem todo israelense é a favor da Grande Israel, nem todo israelense é a favor da ocupação, que organizações de direitos humanos da estirpe de um B’TSelem, centro de informações israelense para os direitos humanos nos territórios ocupados, formado por advogados, acadêmicos, jornalistas e membros do parlamento israelense, cansam de denunciar violações dos direitos humanos nos territórios ocupados ilegalmente desde 1967.
Lamentavelmente, a confusão conceitual, voluntária ou involuntária, de boa ou de má-fé, persiste no Brasil. E não se resume à extrema-direita, conforme recente episódio envolvendo a Universidade Federal de Santa Maria. O que aconteceu?
No dia 28 de agosto de 2014, representantes da Seção Sindical Docente da Universidade Federal de Santa Maria, do Diretório Central dos Estudantes, da Associação dos Servidores da UFSM e do Comitê Santa-Mariense de Solidariedade ao Povo Palestino encaminharam requerimento ao reitor da UFSM em que, “considerando que a atual Política Externa brasileira se baseia no tripé democracia, desenvolvimento e descolonização, situação de fato e de direito divorciada do que se passa entre Israel e Palestina há quase 50 anos, com escalada maior de gravidade nos últimos 8 anos e flagrância indescritível nos últimos dias”, solicita, com base na Lei de Acesso à Informação, dentre outros, dados a respeito da presença de alunos/professores/autoridades/profissionais israelenses na UFSM.
As instituições que assinam o requerimento justificam a solicitação das informações por conta de “uma série de matérias publicadas em jornais, páginas da web e mesmo objeto de trabalhos científicos apresentados em eventos, os quais dão conta da participação da UFSM em projeto de desenvolvimento de tecnologia de ‘defesa’ em parceria com a empresa brasileira AEL, subsidiária da israelense ELBIT”. Ato contínuo, o Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa encaminha documento a todos os Programas de Pós-Graduação da UFSM sobre o assunto “levantamento de informações”, no qual se lê: “Vimos solicitar a V.S.ª o envio urgente de informações sobre a presença ou perspectiva de discentes e/ou docentes israelenses nesse Programa de Pós-Graduação, podendo ser informado por e-mail. Esta demanda atende solicitação de requerimento de representantes da SEDUFS, ASSUFSM, DCE e Comitê Santamariense de solidariedade ao povo palestino”.
Fosse verdade a existência de convênios de cooperação científica com empresas “que fornecem armas e tecnologias à máquina de guerra israelense”, conforme nota oficial do sindicato dos docentes da UFSM, não seria, como questiona lucidamente o colunista Clóvis Rossi, em sua coluna do dia 8 de junho na Folha de São Paulo, muito mais prático e direito encaminhar requerimento à universidade pedindo que confirmasse a existência de tais convênios? Em vez disso, continua Rossi, “preferiu-se o caminho torpe de caçar israelenses pelo campus, o que caracteriza, sim, racismo e discriminação, por mais que o sindicato dos docentes negue. (…) Uma coisa, legítima e necessária, é criticar atitudes e ações do governo israelense. Outra, abusiva, é perseguir israelenses (leia-se: judeus) pelo simples fato de serem o que são. Já se sabe no que dá”.
A caça às bruxas ecoou no meio acadêmico e no próprio Ministério da Educação. Em nota assinada por sua presidente, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que representa mais de 130 sociedades científicas de todas as áreas do conhecimento e mais de 10 mil sócios ativos, afirma que a solicitação, “encaminhada pela universidade da qual o senhor é o representante maior, traz indignação a todos nós da comunidade acadêmica do país. Entendemos que a vida acadêmica do país deva ser referência na promoção de tolerância e respeito à diversidade, combatendo toda e qualquer forma de discriminação. (…) Também gostaríamos de lembrar ao senhor a grande parceria que se deu em nosso país pela redemocratização, quando estiveram lado a lado, o arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns e o Rabino Henry Isaac Sobel, entre outros líderes de outras religiões, para coibir as violências do regime ditatorial militar. Esse é o país que desejamos e não o que, infelizmente, a nosso ver, se expressa em vossa universidade. (…) Dessa forma, a comunidade acadêmica, docentes e estudantes, exigem um pedido de desculpas público, garantindo que nossos espaços universitários sejam lócus de diversidade e valorização da mesma. Lembramos ainda que nos colocaremos firmemente contrários a toda e qualquer forma de discriminação de qualquer ordem e seguiremos na construção de um país mais equânime em todos os sentidos”.
O Ministério da Educação também se pronunciou através da seguinte nota:
“O Ministério da Educação foi surpreendido pela notícia de que um pró-reitor substituto da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) havia pedido que os programas de pós-graduação daquela instituição lhe enviassem informações sobre a presença ou perspectiva de discentes e/ou docentes israelenses nesses programas. Ao tomar conhecimento desse episódio, o ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, solicitou ao secretário de Educação Superior do MEC, Jesualdo Farias, que buscasse junto à UFSM informações a respeito. Após receber as informações da instituição, o MEC manifesta seu claro posicionamento de que a Lei de Acesso à Informação não pode ser utilizada de forma a violar os direitos fundamentais de outros cidadãos. Ela não pode ser empregada como um instrumento para facultar a discriminação de qualquer tipo. Até porque é um dos objetivos da nossa República promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV da Constituição Federal). Qualquer solicitação feita pela Lei de Acesso à Informação que leve a qualquer tipo de discriminação deve ser considerada desarrazoada e, portanto, não deve ser respondida. O MEC faz questão de reiterar – enfaticamente – seu desacordo com qualquer tipo de discriminação e preconceito”.
Iniciativas como a da UFSM e das entidades solicitantes das informações são a prova de que o antissemitismo não é exclusividade da direita raivosa, fascista, religiosa. A esquerda, ou melhor, parte dela, ainda tem dificuldade em desvencilhar Israel e judaísmo, talvez resquícios da guerra fria e da estúpida identificação do judaísmo com o capitalismo (leia-se: direita). Estarão o MEC e a SBPC a soldo de um suposto judaísmo internacional?
Este tipo de equívoco apenas fortalece os conservadores, os fundamentalistas. De um lado, aqueles que veem comprovada a tese de que os defensores da causa palestina são antissemitas mal disfarçados e que é preciso defender o Estado de Israel a todo custo, ao arrepio do Direito Internacional, com todo o “dano colateral” que tal decisão acarreta; de outro, aqueles que colocam no mesmo saco de gatos Netanyahu e eu.
Clóvis Rossi tem toda a razão em desconfiar de antissemitismo quando afirma que a caça aos israelenses é, na verdade, caça aos judeus. A caça deveria ser, se realmente fosse necessária, a indivíduos e não ao conjunto deles arbitrariamente rotulados e estigmatizados. Indivíduos e seus respectivos CPF e RG, a despeito de nacionalidade (israelense), etnia (judaica) ou religião (judaísmo), marcadores independentes entre si e, em muitos casos, irreconciliáveis. Judeu ateu brasileiro, sim senhor.
De boa-fé, a SBPC traz como exemplo o rabino Sobel, senso comum quando se quer identificar um judeu, pela religião. Pensando bem, antes reconhecê-lo pela religião do que pela Estrela de David amarela.
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