Quando trouxemos Miguel da maternidade e os avós deram no pé assim
que o pirralho começou a chorar e mijar, percebemos a enrascada em que havíamos
nos metido. Noites em claro, choro sem motivo (será?), peito o tempo todo,
Renata com olhos perdidos no infinito, instintos materno e paterno o escambau.
Amor incondicional? Pois sim... Ausência de diálogo, sem esse papo de que o
olhar diz muito, diz tudo. A palavra e a fala é que nos faz humanos, elas nos
permitam compartilhar sentimentos, a forma como experimentamos o mundo, como o
interpretamos. Quem não se comunica se trumbica. Miguel não era humano? Não
chegaria a tanto, só sei que, numa madrugada, Renata pediu arrego e ligou pra
mãe implorando socorro porque não conseguia fazer Miguel parar de chorar e um
vulto no andar de cima ficava espiando para tentar descobrir de onde vinha o
barulho desesperante. Primeira e única vez, marcante pra sempre.
Aos poucos, Miguel foi se humanizando. É incrível quando,
caminhando na rua, você ouve seu filho ler, pela primeira vez, o letreiro de
uma loja ou lê a página de um livro infantil pego na biblioteca da escola. No
início, balbuciava alguns sons parecidos com palavras, depois palavras curtas
inteiras e, de uma hora para outra, desembestou a falar, falar, falar e, hoje,
não me deixa assistir em paz o noticiário da televisão porque o silêncio é um
crime. A alfabetização lhe permite andar com os próprios pés, ler o mundo de
seu jeito em diálogo com quem o circunda. Seu vocabulário faria corar de
vergonha muito marmanjo com curso superior (“papai, eu estava me referindo
a...”). É quando começa a fase dos “porquês” e não adianta responder “porque
sim” porque “porque sim” não é resposta. E tome discussão e conflito e
argumentação e contra-argumentação e cara amarrada porque, no final das contas,
quem manda são os pais e se os pais dizem que não pode, não pode. Simples
assim. Saudades do choro, que o peito alheio amainava...
Sentados à frente da televisão, assistimos desalentados os
desdobramentos do massacre ocorrido numa casa de espetáculos de Paris. O
repórter fala de terroristas e Miguel pergunta o que são terroristas.
Explicamos que são pessoas ruins que causam terror, medo, naqueles que pensam
diferente deles, geralmente matando e causando sofrimento. Ele pergunta se teve
gente que conseguiu fugir antes de ser morta ou se conseguir se esconder dos
alucinados. Explicar o significado de
uma palavra não parece tão complicado, pior é ter de ajudar a entender imagens
que vê.
Certa vez, Miguel pergunta por que todos os bandidos são
pretos (ou teria dito “negros”?). Perguntamos de onde ele tirou essa ideia, e
ele responde que é o que vê na televisão. Temos que explicar que nem todo
bandido é preto (ou seria “negro”?), que tem muito bandido de pele clara que
não aparece no noticiário ou que, mesmo aparecendo no noticiário, não é
apresentado como bandido.
Sua percepção de que o crime ou o abandono tem a cor negra se
repete quando, através da janela do táxi, vê um menino de rua cheirando cola.
Renata me contou que, em outra oportunidade, Miguel disse que não gostaria de
ter nascido preto porque os pretos são invisíveis. Socialmente invisíveis,
acrescentaria eu, sem tirar sua sagacidade e perspicácia. Ele percebeu que,
apesar de existirem fisicamente, indivíduos de pele escura, sobretudo aqueles
que vagam pelas ruas do Rio de Janeiro, não existem para quem passa por eles,
não são reconhecidos como parte da mesma sociedade, como um “outro
significativo”.
Nosso dever é desconstruir estas percepções, ajuda-lo a
reinterpreta-las, combater estereótipos, preconceitos, fundamentalismos de
qualquer tipo. Dá trabalho, mas, se não fizermos nada, quem o fará?
Comentários
A propósito, "es preciso luchar contra el odio que nos quieren imponer contra el "otro":
http://saudepublicada.sul21.com.br/2016/06/20/narcisismo-homofobia-e-discriminacao-na-politica/
Paula