No início da semana passada, dois homens
foram presos em flagrante após abusarem sexualmente de duas mulheres, em locais
diferentes, em uma das linhas do metrô de São Paulo. Os trens do metrô e da
CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) registraram, em 2015, uma
média de um caso de abuso sexual a cada dois dias na Grande São Paulo. Entre os
meses de janeiro e dezembro do ano passado, foram contabilizados 181 casos, o
que equivale um aumento de mais de 20% em relação às 150 ocorrências
registradas em 2014. Segundo o delegado responsável pelo Departamento de
Capturas e Delegacias Especializadas, o que leva a polícia a classificar uma
situação de abuso sexual no transporte público como contravenção ou crime “é a
análise do caso concreto feita pelo delegado, tendo por base a gravidade da
situação e o fato de o acusado ter agido ou não com violência”. Há, portanto, uma
gradação de tipologias aplicadas a situações particulares, desde aquelas em que
“o sujeito encosta na mulher”, considerada “importunação ofensiva ao pudor”, até
aquelas em que o homem ejacula, “aí é estupro direto”. Pela legislação
brasileira, as penas variam de acordo com a conduta delituosa: pagamento de
multa para a importunação ofensiva ao pudor; prisão de dois a seis anos para
violação mediante fraude (quando o suspeito mente para a vítima, passando-se
por outra pessoa, para leva-la a fazer sexo ou praticar outro ato libidinoso
com ele); de seis a dez anos em caso de estupro. No metrô de São Paulo, a
campanha “Você não está Sozinha” estimula as mulheres a registrarem as
agressões.
No Rio de Janeiro, a lei nº. 4.733, de 23 de
março de 2006, passou a obrigar as empresas que administram o sistema
ferroviário e metroviário do estado a destinarem vagões exclusivamente para
mulheres nos horários de pico matutino (entre 6h e 9h) e vespertino (entre 17h
e 20h). Os vagões a serem destinados para o transporte exclusivo de mulheres
“poderão ser destacados entre os que integram a composição dimensionada para o
fluxo de passageiros nos referidos horários de pico, ou adicionadas à
composição, a critério da concessionária”. O destaque, ora vejam que surpresa, é
representado pela cor rosa. Dez anos após a promulgação da Lei dos Vagões, o
Diário Oficial do Estado a republicou com a previsão de multa variando entre R$
173 e R$ 1.084 ao homem que “ingressar e permanecer no vagão exclusivo”.
Outro dia, indo para o trabalho acompanhado
de minha esposa, que seguia para o dela, entramos no vagão destinado a ambos os
gêneros. Inadvertidamente, coloquei os pés no “vagão rosa”, estávamos num
daqueles trens chineses em que não há separação interna entre as composições. Percebi
que entrava em terreno pantanoso e, antes que caísse um raio em minha cabeça, voltei
ao espaço que me cabia. Olhei com tristeza para aquelas mulheres, sinceramente,
segregadas como uma casta inferior, intocáveis, poluídas, sujas. Ao mesmo tempo,
temi pela segurança de minha esposa, tendo que compartilhar o espaço com homens
sedentos de sexo, que só pensam “naquilo”. Não estou sozinho, antes que me
acusem de ojeriza ao Segundo Sexo, bem acompanhado inclusive de feministas de
carteirinha como Marília Moschkovich, que publicou fantástico artigo sobre a
questão. Nele, Marília afirma que o fato de apenas países de cultura machista, dentre
os quais, Japão, Egito e Irã, terem implantado esse tipo de política pública
não é coincidência, ficando claro que além de não resolver nada e reforçar a
heteronormatividade e o próprio machismo, os vagões exclusivos ainda fomentam
outra forma de opressão de gênero, porque parte-se de três pressupostos.
Em primeiro lugar, os vagões exclusivos
culpabilizam as mulheres pelo próprio assédio, a questão sendo abordada como se
elas fossem o problema da coisa toda. Ou seja, em sociedades machistas como a
brasileira, as mulheres são culpadas pela própria sexualidade – e pela
sexualidade dos homens também. Assim, seguindo o raciocínio, quando sofrem
agressões, a solução é limitar, fiscalizar e controlar o corpo e a atitude
delas. É a velha estória de que fulana foi estuprada porque “estava pedindo, se
oferecendo”, afinal de contas, com aquela minissaia era óbvio (na cabeça do
delinquente, claro). Em segundo lugar, pressupõe-se a naturalidade do
descontrole sexual dos homens, tratando-se o assédio e o estupro como se fossem
parte do sexo, como se estivessem relacionados a desejo sexual e não a uma
opressão e a uma questão de poder. Daí a minha ironia ao temer pela minha
esposa no vagão “misto”. Em terceiro lugar, pressupõe-se que homens têm, necessariamente,
desejo sexual por mulheres e vice-versa, comumente chamada de
“heteronormatividade”. A separação de homens e mulheres no transporte público, portanto,
reforça a ideia de que a heterossexualidade e heteroafetividade são o “normal”,
o “natural”, e de que relacionamentos gays e lésbicos são “exceção”, “aberração”.
No final das contas, fulmina Marília, “políticas como essa do vagão exclusivo, estão
muito mais para Marco Feliciano do que para Simone de Beauvoir”.
A instituição do vagão rosa apenas desnuda o
machismo da sociedade brasileira, não o resolve tampouco o mitiga. Ele tapa o
sol com a peneira, é um paliativo sem efeito algum para a mudança estrutural da
mentalidade dinossáurica daqueles que teimam em acreditar que a mulher e seu
corpo existem para uso e abuso independente de sua vontade. Em suas cabeças
doentias, manda quem pode, obedece e se submete quem tem juízo. É um autoengano,
de boa ou má-fé, semelhante àquela velha situação dos pais que preferem que as
filhas tragam seus namorados para casa, onde acreditam terem maior controle
sobre atitudes libidinosas, esquecendo-se que o dia tem vinte e quatro horas e
que, neste período, em algum momento, o casal de pombinhos pode fazer aquilo
que o zelo parental pretende proteger, a dignidade e a honra da moça, ainda que
ninguém tenha pergunta à moça se ela quer que sua dignidade e honra sejam
protegidas. No caso do metrô, a proteção episódica durante a viagem não se
estende, necessariamente, a outros espaços públicos, daí a inocuidade da
segregação espacial. A emenda sai pior que o soneto. A campanha pela denúncia
das agressões e a prisão dos criminosos são muito mais eficazes, como parece
ser o que acontece em São Paulo. Quer manter a imoralidade, mané? Que o faça no
escurinho da caverna que você chama de casa.
Há alguns anos, assisti a uma palestra de um
sobrevivente judeu do campo de extermínio de Auschwitz. A certa altura, ele
afirmou categoricamente que o sofrimento por que passaram os judeus nas mãos
dos nazistas não tem equivalente, que foi e será sempre inigualável, nem mesmo
os genocídios étnicos perpetrados em países africanos, um dos quais, acrescento
eu, fantasticamente retratado pelo jornalista norte-americano Philip Gourevitch
no livro Gostaríamos de informa-lo de que amanhã seremos mortos com nossas
famílias: histórias de Ruanda. É claro que não tenho, enquanto não-tutsi ou não-hutu,
etnias que digladiaram em Ruanda, como sentir, subjetivamente, aquilo que os
membros dos grupos étnicos sofreram como consequência da perseguição e do
preconceito. No entanto, há um sentimento de compaixão, de solidariedade, de
compartilhamento do sofrimento pela desumanidade dos algozes, que está acima de
diferenças étnicas, religiosas, de gênero, raciais ou outra qualquer.
Não preciso ter fome para saber que “quem
tem fome, tem pressa”, como dizia o Betinho. Não preciso sofrer preconceito
pela cor da minha pele para saber o quão humilhante isto é. Não preciso ser
judeu para ser solidarizar-me com as vítimas judias do nazismo. Não preciso ser
mulher para saber o quão degradante é ouvir gracinhas pouco lisonjeiras, assovios
e palavras de baixo calão quando se vai mesmo comprar um pãozinho na padaria da
esquina. Se é verdade que “cada um sabe onde dói o calo”, também é verdade que
há um “calo” comum que pode unir a todos,
qual seja, o preconceito, o ódio ao diferente e à diversidade cultural. Cabe
ao Estado promover políticas públicas que promovam o encontro e a convivência
mais ou menos harmoniosa com o diferente (ninguém é obrigado a gostar daquilo
que lhe é estranho, mas é, sim, obrigado a respeitá-lo) e, caso necessário, usar
do instituto do monopólio da força para punir quem insistir em desrespeitar
regras básicas de vida em sociedades democráticas.
No multiculturalismo, é muito tênue a linha
que separa o respeito à diferença e a segregação que pretende protege-la. Promover,
hipocritamente, a segregação em nome do respeito à diferença e da própria
segurança física do grupo protegido é um tiro no pé.
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