Ironia das ironias, a recordação mais interessante que
trouxe de uma viagem pela Europa no estilo “mochilão”, no longínquo ano de
2000, ano do Jubileu, e que Roma, a cidade eterna, estava abarrotada de
turistas, sobretudo católicos, de tudo quanto é lugar ávidos por ouvir as
palavras do Papa João Paulo II, foi uma camisa negra com a seguinte frase: “Dio è morto, Carlo Marx è morto, e anch’io non mi sento tanto bene”.
Traduzindo: “Deus está morto, Marx está morto e eu também não me sinto muito
bem”. Quando meus pais a viram, caíram na gargalhada. Soube, muito tempo
depois, que a frase é de Woody Allen. Há mais de uma interpretação possível
para ela. Pode ser um reflexo do caráter niilista, depressivo e neurótico do
genial cineasta, mas também pode ser uma homenagem irônica, sarcástica, a
personagens históricos (des) importantes, nivelados ao próprio Allen, que se
lhes equipara tal qual um Super-Homem. Foi essa a minha interpretação.
Um belo
dia, andando na rua, uma senhorinha para na minha frente porque lhe chamou à
atenção a parte da frase que diz que “deus está morto”. Começou, então, uma
sessão de tortura (para mim). A senhorinha iniciou um palavrório infinito sobre
a ressurreição de jesus cristo, sobre a imortalidade de deus, sobre a minha
falta de respeito, sobre como eu a estava ofendendo, um absurdo, uma vergonha
usar uma camisa de tão mau gosto. Bem, gosto não se discute. No máximo, se
lamenta. Ademais, creio que a senhorinha não possuía discernimento suficiente
para entender a fina ironia que Allen imprimiu à frase, afinal, a ovelha do
rebanho (seja o rebanho que for) não é capaz de pensar por si própria, muito
menos em italiano.
Num Estado
democrático de direito, laico, a liberdade de expressão é um valor fundamental.
Na Alemanha e nos Estados Unidos, mesmo manifestações de grupos neonazistas e
racistas, como os skinheads e a Ku Klux Klan, são protegidas pelas forças
policiais em nome da liberdade de expressar suas ideologias, por mais
indigestas e ofensivas que sejam. Assim, podemos dizer que a ofensa faz parte
do convívio nas sociedades contemporâneas porque, diferente da Idade Média, em
que o discurso sagrado da religião era o único legitimado, em que Estado e
religião se misturavam em nome da manutenção da hierarquia social e dos
privilégios de reis e autoridades eclesiásticas, a diversidade de ideias é a
regra, e não leva inevitavelmente à fogueira. É por isso que a senhorinha tem
de aguentar a minha camiseta, tanto quanto eu tenho de aguentar o pregador evangélico
solitário que sobe no coreto da Praça São Salvador e fica se esgoelando ao
vento enquanto o resto dos frequentadores toma sua cervejinha e as crianças
andam de bicicleta. Ele me ofende, mas, azar o meu.
Como seria
bom vivermos num Estado laico!
No Brasil,
a mais alta corte de justiça, o Supremo Tribunal Federal, está submetida a um
crucifixo pregado numa de suas paredes. O pode legislativo está infestado de
representantes obscuros e obscurantistas de igrejas de tudo quanto é matiz, disponíveis
no supermercado da fé. Na atual corrida à prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro, o candidato que sempre esteve vinculado à Igreja Universal do Reino de
Deus, seja por parentesco com seu fundador, seja por afinidade ideológica, mas
que insiste em dizer que esta mácula não influenciará na formulação de
políticas públicas, está léguas à frente do segundo lugar. O carioca não quer
um Estado laico.
Leio n’O
Globo que os candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro fazem questão de visitar
o arcebispo da cidade, uma autoridade que, “embora
não seja um militante político, tem uma influência significativa na cidade”, de acordo com a matéria, para
apresentar-lhe as propostas de governo. Inclusive o candidato evangélico que
não é evangélico na propaganda eleitoral. Inacreditavelmente, continuamos, em
pleno ano de 2016, com a cerimônia do “beija mão”, tradição medieval de
reverência e submissão a autoridades monárquicas e eclesiásticas, invocando o
respeito ao poder divino e ao papel paternal e de protetor daquele a quem a mão
é beijada.
Resta
a nós, pecadores, fazer jus ao que Nelson Rodrigues certa vez disse: “nós somos
dominicais por excelência”. E ir à praia, tomar mate do tonel e comer biscoito
globo.
Link:
Comentários