Na semana passada, causou rebuliço o depoimento de uma
mulher branca que, para esconder a calvície involuntária decorrente do câncer, decidiu
usar um turbante na cabeça. Foi acusada, por um grupo de mulheres negras que
estava no mesmo vagão do metrô, de indevida “apropriação cultural”, afinal, o
turbante seria um objeto de uso exclusivo de indivíduos cuja pigmentação da
pele cruza determinada barreira cromática, critério peculiar, talvez inspirado na
criminologia de Cesare Lombroso, a vanguarda do atraso. Houve quem duvidasse da
veracidade do depoimento, da própria existência da doença da moça. Sinceramente,
acho irrelevante se o depoimento é verdadeiro ou fruto da imaginação de alguém
louco para os cinco minutos de fama. Importa, sim, a reação dos “ofendidos”,
esta sim real e lamentável.
O
respeito à diferença está sendo aniquilado por falsos profetas que reduzem suas
identidades a certos fetiches. Cabelo assim ou assado, música assim ou assada,
linguagem assim ou assada, roupa assim ou assada, comida assim ou assada, sexo
assim ou assado, religião assim ou assada, cor assim ou assada. É branquinha, tá com câncer e quer usar um lenço que
achou bonitinho pra esconder a careca? Cuidado, este objeto, devidamente
registrado pelos tribunais da cultura legítima/legitimada, apropriado (roubado)
indevidamente, não te pertence. Olha só, galera pra frentex: cultura é
dinâmica, e o significado que damos a certos fenômenos/manifestações/objetos
varia de indivíduo para indivíduo, de grupo para grupo, de tempo em tempos. As
fronteiras culturais são movediças. Como dizia Sartre sobre a
"inteligência" dos antissemitas: possuem a "constância e
impenetrabilidade dá pedra". Essa frase lapidar cai como uma luva para os
artífices de uma sociedade cada vez mais embrutecida, mal-humorada e
intolerante em nome dá tolerância.
A
estupidez conceitual dessa tal de "apropriação cultural", se levada a
sério e posta em prática pela patrulha ideológica, exterminará iniciativas como
a da Orquestra Sinfônica Heliópolis, cujos integrantes, não brancos, traem a
causa submetendo-se ao jugo de um maestro branco e tocando instrumentos
opressivos, como o violino e o oboé. E tem mais: o rapaz que toca Luiz Gonzaga
no surrado violino lá perto de casa e cujo sonho é tocar numa orquestra
qualquer, longe de ser um legítimo representante da raça ariana de fina cepa, será
educadamente convidado a largar o instrumento em troca de outros mais
apropriados à sua identidade, de “raiz”, como um berimbau, um pandeiro ou uma
bola. Haja alfafa.
A diferença entre os cruzados tupiniquins que
guerreiam contra a “apropriação cultural” e, digamos, a Frente Nacional
capitaneada por Marine Le Pen, é que aqueles se apresentam com um discurso envernizado
de tolerância e respeito à diferença, ao passo que estes não têm vergonha de
afirmar sua intolerância e sentimento de superioridade em relação ao “outro”.
Ambos sonham com identidades congeladas porque dá menos trabalho intelectual,
adoram estereótipos e a ideia de cultura “pura”, asséptica. Cada um no seu
quadrado. Constroem muros e destroem pontes.
O ideal de multiculturalismo destes Humilhados e
Ofendidos é, na verdade, uma ideologia da anti-assimilação – assimilação no
sentido de incorporação à sociedade, trocas simbólicas, fluxos de identidade, e
não submissão à “cultura” alheia -, ignorando ou fingindo ignorar que toda
cultura é inventada e reinventada. Não lhes convém o diálogo. Combatem o
racismo e o preconceito com mais racismo e preconceito, fechamento ao diferente.
Ou não é racismo e preconceito criticar um amigo negro que gosta de dar/comer
um (a) branco (a)? Ou pior, que namora ou pretende casar-se com um branquelo?
Ora, ora, pau que dá em Chico também dá em Francisco. Criaram até um verbo para
a traição sexual à identidade ancestral: palmitar. Eu palmito, tu palmitas, ele
palmita.
Diz-se (os próprios guias turísticos gostam de contar)
que, durante o regime do Apartheid, na África do Sul, quando a polícia não
conseguia flagrar dois indivíduos “racialmente incompatíveis” mantendo
intercurso sexual (sexo entre raças distintas equivalia a sexo entre espécies
distintas), o jeito era verificar a temperatura da cama, qualquer variação para
cima provava incontestavelmente que os pombinhos transgrediram as normas da
pureza racial, infectando quem não podia ser infectado e limpando quem não
deveria ser limpo. Tenho a sensação de que há gente saudosa deste tempo, e não
são os discípulos de Pieter Botha.
Como bem diz a Mariliz Pereira Jorge, colunista da
Folha de São Paulo (“branquela, branquela, branquela”), num artigo recente a
respeito desta falsa problemática do turbante:
Patrulhar o que os brancos vestem,
comem ou cantam não resolverá o problema crítico de desigualdade no Brasil, a
quantidade de negros mortos pela polícia, o desequilíbrio da presença nas
universidades, em cargos de chefia, a representatividade política. O Brasil é
um país racista. Mas não deixaremos de ser apenas porque de agora em diante um
grupo pequeno de pessoas decidiu que branco não pode usar turbante, dreadlocks,
ser sambista.
Para terminar, um depoimento fictício de um fulano qualquer em
futuro longínquo, mas nem tanto, se continuarmos nessa toada da “apropriação cultural”:
“Ontem, presenciei uma cena dantesca. Numa roda de capoeira, um
branquelo de olhos verdes com cabelo dreadlock se esgueirava no meio do
pessoal. Os demais componentes não pareciam constrangidos, mas eu sei que algo
estava “fora do lugar”. O cara resolveu jogar, e não é que fazia bonito? Que
petulância! E mais. Batia um papo animado com uma menina, “de raiz”, que soube depois ser sua namorada. Não
satisfeito em apropriar-se do cabelo alheio e da manifestação artística alheia,
ainda dava uns malhos na mulher alheia. No final, se lambuzou com um acarajé
surgido sabe-se lá de onde. Meu mundo caiu. E, de novo, todos pareciam agir
como se nada de anormal estivesse acontecendo. Eu não. Chamei a polícia e
denunciei a pouca vergonha, cada um no seu lugar, ora essa. O indivíduo prestou
depoimento na delegacia e assinou um termo de ajustamento de conduta em que se
comprometia a manter distância razoável dos “outros”, comer a comida (com duplo
sentido, por favor) que lhe correspondia, usar a calça jeans que lhe
correspondia, o penteado que lhe correspondia e tudo o mais que lhe
correspondia. Fiz meu papel de cidadão na construção de uma sociedade mais
justa e respeitosa das diferenças inerentes e inescapáveis que cada um de nós
leva no sangue. Ainda bem que o maluco não estava de turbante, porque aí não
haveria solução que não a prisão em razão de ameaça à paz social”.
E a galera do Apartheid que trancafiou Mandela por anos a fio dá
risada e vaticina: nós somos vocês amanhã...
Link da matéria da Mariliz:
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