Velhinhos e fumantes

Meu avô materno costumava atravessar a rua fora da faixa de pedestres, simplesmente decidia cruzar o asfalto e os carros que viessem em sua direção que se virassem para evitar a colisão. Aquilo sempre me gerou certa perplexidade, sempre tive dificuldade de entender o flerte que vovô David travava com a morte. E ai de quem o interpelava, recebendo um dar de ombros ou grunhidos de quem pouco se importa com a opinião alheia. Fiquei, por muito tempo, matutando uma explicação para aquele comportamento pouco civilizado, até que cheguei a uma conclusão provisória: os velhos, cansados de seguir regras e padrões de comportamento ditados pela sociedade, já satisfeitos por cumprirem sua cota de exigências que os inúmeros papéis sociais lhes impuseram ao longo da existência, decidiram “chutar o balde”, comportar-se como seres acima do bem e do mal, celestiais, sagrados, intocáveis, imunes a críticas e reprimendas dos “de baixo”, frequentemente intolerantes e desrespeitosos. 

Variações sobre o mesmo tema: velhinhos que furam a fila do caixa do supermercado na maior cara de pau, embora haja aquela famigerada fila preferencial para a “melhor idade” (!) que mais atrapalha que ajuda, na maioria das vezes; velhinhos que ameaçam furar a bola da criançada que teima em brincar na pracinha, ora vejam que abusados; velhinhos que conversam aos berros no meio da sessão do cinema ou da peça de teatro; velhinhos que jogam dezenas de moedas sobre o balcão da padaria em busca da quantia exata a ser paga pelos dois pães franceses e os cem gramas de mortadela, danem-se os outros fregueses que começam a formar uma fila gigantesca. Já fui advertido que meu dia chegará e que não falhará o famoso efeito Orloff, “eu sou você amanhã”, portanto, a pedra de hoje é a vidraça de amanhã.

Fumantes exibem um comportamento sociopata semelhante ao dos velhinhos ranzinzas. Proibidos de se intoxicarem voluntariamente (e involuntariamente, no caso dos já perdidos para o vício) em locais de uso coletivo, públicos e privados (bares, boates, restaurantes, escolas, universidades, hotéis, pousadas, casas de shows, veículos de transporte coletivo, repartições públicas, instituições de saúde) ainda que o ambiente seja parcialmente fechado por uma divisória, parede, teto ou toldo, passam a comportar-se como animais enjaulados e famintos, alheios e indiferentes à saúde de quem lhes cerca.

A dependência química não é mole, não, mas a falta de “simancol” é imperdoável. Dia desses, no boteco aqui perto de casa, eu e Miguel compartilhávamos um suculento e crocante pastel de carne moída, regado a Fanta laranja (ele) e Eisenbahn (eu), quando duas senhorinhas sentam-se na mesa ao lado. Uma delas pede à garçonete que lhe trouxesse um cigarro a varejo, eu não ouvi o pedido, quem ouviu foi o Miguel. Ato contínuo, ele me pergunta se era permitido fumar naquele local, afinal, estávamos debaixo de um toldo, protegidos física e simbolicamente pela Lei Anti-Fumo. O moleque, então, resolve cobrir o nariz com as duas mãos, deixando claro à viciada anti-social que aquele comportamento lhe era extremamente desagradável. Eu fiquei meio constrangido, pedi-lhe que parasse com aquilo, bobagem a minha, ele estava certíssimo e eu tinha era que estar orgulhoso de ver que minha campanha anti-tabaco está dando bons frutos. A senhorinha “boca de cinzeiro”, então, levanta-se e vai fumar na calçada, o que não fez muita diferença para nós, fumantes passivos, visto que as duas continuavam a animada conversa e o vento soprava em direção ao bar, donde a fumaça tóxica insistia em empestear o ambiente.

Infelizmente, aos fumantes ainda lhes é permitido fumar em ambientes abertos, como praças e jardins. Então estou lendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do Saramago, hiper concentrado porque Saramago não é bolinho não, refastelado no banco da pracinha, e chega um senhorzinho que começa a fumar ao meu lado. Afasto-me cada vez mais para a extremidade oposta do banco na tentativa de preservar meu olfato e meus pulmões, mas a fumaça me persegue. Ele traga sofregamente mais dois cigarros, colocando, para dentro do organismo, algumas milhares de substâncias tóxicas e, para fora, a famigerada fumaça  que vem aguçar minha alergia. Em seguida, vai embora, possivelmente almoçar, já passavam de onze da manhã.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o tabagismo passivo é a terceira maior causa de morte evitável no mundo, perdendo apenas para o tabagismo ativo e o consumo excessivo de álcool. Em bebês, há um risco cinco vezes maior de morrerem subitamente sem uma causa aparente, além de doenças pulmonares até um ano de idade; em crianças, maior freqüência de resfriados e infecções de ouvido e maior risco de doenças respiratórias como bronquite, pneumonia e asma; em adultos não-fumantes, risco 30% maior de desenvolver câncer de pulmão e 24% maior de infarto do coração do que os não-fumantes não expostos ao tabagismo.


Esse sim é o verdadeiro cigarro do capeta...


Comentários

Marc M. disse…
boa Marcelo!!