Sábado à tarde. A Renata recebe uma mensagem no
grupo de Whatsapp criado pelas mães da turma da escola do Miguel informando que
dois coleguinhas estavam indo pro parque jogar bola. Eu o levo, depois de
comprar duas garrafas de água na padaria da esquina de casa. Sento-me ao lado
das duas mães que haviam tomado a iniciativa de juntar os pirralhos. Não lembro
muito bem por que o papo enveredou para questões relacionadas à saúde das crianças.
Um dos colegas precisou passar por uma cirurgia de fimose havia uns três ou
quatro anos. Quando a estória terminou, eu conto que nosso filho foi
circuncidado recém-nascido, ainda na maternidade, por um urologista e expliquei
como foi todo o procedimento. Teoricamente, foi uma questão de higiene, mas a mãe
do Miguel também achava que o pênis circuncidado é esteticamente mais
apresentável, tem certa “personalidade”.
Semanas depois, Miguel foi convidado para uma festa
de aniversário de outro colega de turma da escola. A comemoração seria
exclusiva para os meninos, que se esbaldariam por quatro horas num campo de
futebol de grama sintética, oportunidade para o rapazola estrear a chuteira
novinha em folha. A mãe do pequeno aniversariante estava aliviada pelo pouco
trabalho que teve em organizar a festa, afinal, como me explicou, diferentemente
do que acontece com as meninas, que precisam de uma mesa toda decorada, apenas
alugou o espaço e levou a bola. Meninos são minimalistas, pensei eu com meus
botões.
Depois de quase um ano vivendo em Curitiba e
estabelecendo contato, sobretudo, com pais e mães de colegas de turma do
Miguel, arrisco duas observações.
A primeira, e mais contrastante em relação que
vivíamos no Rio de Janeiro, é a invisibilidade das meninas da turma, sua
completa ausência na programação de final de semana dos meninos. Há uma
separação voluntária, mesmo não dita, entre eles, tipo Clube do Bolinha e Clube
da Luluzinha, algo que soa anacrônico, velho, conservador, tradicional.
Fenômeno que também ocorre entre os pais porque o grupo de whatsapp onde as
mães dos meninos se comunicam é exclusivamente das mães, como se esta tarefa
fosse mais feminina que masculina. O pai é o provedor da casa, a mãe é quem
cuida do bem-estar dos filhos. Talvez eu seja um homem feminino, que não fere o
meu lado masculino, né, Pepeu?
A segunda é a representação dos meninos como o
“sexo forte” e as meninas como o “sexo fraco” ou o “sexo frágil”. Os meninos
jogam bola, entram de carrinho no adversário, suam aos borbotões, são brutos,
viris, falam palavrão. As meninas não ligam pra futebol, são sensíveis,
precisam de carinho e de cuidado, o negócio delas é uma mesa bem bonita
adornada com muitas flores e docinhos e, se possível, um príncipe encantado
colado na parede do quarto, responsável por seu bem-estar e proteção contra as
maldades deste mundo cruel.
Querendo ou não, esses pais reforçam os
estereótipos relacionados às identidades masculina e feminina. Homem não chora
e joga bola; mulher brinca de boneca, gosta de cozinhar e engravida. Reproduzem
a ideia tão démodé de submissão feminina, e imagino que se sintam bastante
incomodados com a blasfêmia do empoderamento das mulheres. Esse discurso
cheirando a naftalina ganha fôlego, por outro lado, quando a futura ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos afirma que vai tratar “meninas como
princesas e meninos como príncipes” porque meninos e meninas são diferentes e
que, no momento em que os dois são colocados em pé de igualdade, o menino vai
pensar “ela é igual, então pode levar porrada”. Uma visão distorcida da identidade
de gênero, que não decreta pura e simplesmente a igualdade dos gêneros, descontextualizada,
mas a possibilidade de sua construção a partir de inúmeros atributos e
representações, questionando estereótipos e acusações de desvio direcionados a
quem não se encaixa em modelos de comportamento pré-estabelecidos. A própria
ministra reproduz uma visão negativa da masculinidade, que “dá porrada”.
No último final de semana, visitamos o parque de
diversões Beto Carrero World, em Santa Catarina. Na fila do carrinho bate-bate,
brinquedo que mais gosto, pau a pau com a montanha russa, algumas crianças
puxam papo conosco. O Miguel não dá muita bola, mas eu dou corda. Perguntam
qual carrinho a gente vai escolher, havia azuis e rosas. Eu digo que vou
escolher um carrinho rosa porque eu gosto da cor rosa, o que é a mais pura
verdade, e elas dão risada de deboche.
É... Desconstruir conceitos – ou melhor,
pré-conceitos - é tarefa árdua.
Declarações da futura ministra: https://www.revistaforum.com.br/damares-vamos-tratar-meninas-como-princesas-e-meninos-como-principes/
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