Eu faço parte de um grupo de Whatsapp formado
exclusivamente com o intuito de apoiar moralmente seus membros a deixar o
sedentarismo. Boa parte já passou dos quarenta e, como é compreensível, a menos
que a ameaça de um ataque cardíaco fulminante bata à porta, nossa vontade é de ficar
sentado no sofá vendo Netflix e tomando uma gelada. Cada um de nós deve
estabelecer uma meta individual anual de quilômetros percorridos, nadando,
correndo ou pedalando. O administrador do grupo divulga, periodicamente, nossa
situação quilométrica e, a título de estímulo geográfico, informa em qual local
do globo terrestre estaríamos se somássemos a distância percorrida na solidão
das madrugadas. Parece que, na semana passada, estávamos curtindo uma praia no
Caribe.
Dedicado que sou, instalei um aplicativo no meu
celular que mede e compartilha dados de desempenho - informa o tempo, a
distância, a relação entre tempo e distância, a variação de elevação no terreno
e as calorias gastas. Orgulhoso, posso dizer, sem vergonha, que não só tenho
cumprido com minha meta individual como estou bem acima da expectativa, eis que
posso me dar ao luxo, vez ou outra, de dormir um pouco mais do que o
travesseiro.
Uma recente pesquisa da Escola de Educação Física e Esporte
da Universidade de São Paulo, realizada com 1.154 usuários daquele aplicativo
que eu tenho instalado no meu celular, comprovou que pessoas que correm com
regularidade se sentem mais alegres e menos estressadas. Para 81% dos
participantes do estudo, a corrida traz, de fato, felicidade. Outros dados
interessantes: 92% dos corredores afirmaram se sentir bem depois de correr e
90% disseram que aliviam o estresse dessa forma. Para 87%, correr faz diminuir a
ansiedade e 80% declara que a autoconfiança vai lá pra cima.
Mas, se atividades físicas fazem tão bem à saúde e
trazem tanta felicidade assim, por que cargas d’água há cada vez mais
indivíduos sedentários, com problemas de obesidade, complicações
cardiovasculares, diabetes, doenças reumáticas, câncer e degenerações
neurológicas? Por que não nos exercitamos com regularidade?
O famoso doutor Dráuzio Varella tem a resposta. A
razão é muito simples: descontadas as brincadeiras da infância, fase de
aprendizado, nenhum animal desperdiça energia. Só o fazem atrás de alimento,
sexo ou para escapar de predadores. Satisfeitas as três necessidades,
permanecem em repouso até que uma delas volte a ser premente.
“Vá ao zoológico. Você verá uma onça dando um pique
para manter a forma? Um chimpanzé – com quem compartilhamos 99% de nossos genes
– correndo para perder a barriga?”
Faz todo o sentido. Que o diga o saudosíssimo escritor
baiano João Ubaldo Ribeiro, que sempre deixava clara sua repulsa pela
indefectível “caminhada no calçadão” do Leblon, prova cabal de sua entrada na
“terceira idade”. Sua ojeriza à atividade física só não era maior do que é o
nosso prazer em ler suas crônicas:
“Receio fazer uma imediata legião de desafetos, mas a
verdade é que já tentei, já até fixei um sorriso hipócrita na cara ao chegar ao
calçadão, mas abomino andar nele, a dolorosa realidade é esta, não dá mais para
esconder. Devo padecer de endorfinopenia incurável, expressão que acho que
acabo de inventar agora, para descrever a conclusão de que as famosas
endorfinas não gostam, ou desistiram, de aparecer no meu organismo. Será talvez
uma das incontáveis deficiências que a Natureza me dadivou, mas o único efeito
que andar no calçadão exerce em mim é encher o saco – sem pretender deslustrar
nenhum andador extremado, respeito a opção sexual de todos, sou muito
politicamente correto” (“Saúde para dar e vender”, 2004)
O doutor Dráuzio, diferentemente do João Ubaldo, curte
um masoquismo. Corre maratonas, acorda às cinco e meia da matina para treinar.
Diz que, no primeiro quilômetro de treino, é dominado pelo pensamento
recorrente de que não há justificativa para um homem passar aquilo que estava
passando, um verdadeiro martírio. Então, como num passe de mágica, a corrida se
torna suportável embora, boa mesmo, apenas quando termina. Nesse momento, o
autor de Estação Carandiru revela que “a circulação (sanguínea) inundada de
endorfinas traz uma sensação de paz celestial, um barato igual ao de drogas que
nunca experimentei”.
No meu caso, o martírio se prolonga até o terceiro
quilômetro, “ai, meu deus, e imaginar que ainda nem cheguei ao parque e lá no
parque eu tenho que dar quatro voltas completas e depois voltar para casa”. E,
de repente, as pernas parecem ganhar vida própria, independente do diabinho que
insiste, vez por outra, em avisar que aquilo é uma perda de tempo, o ser humano
é um bicho esquisito, e o aplicativo já está marcando dez, quinze quilômetros
de sudorese desenfreada.
Sensação de dever cumprido. Endorfinas agindo. Uma
cervejinha gelada para comemorar as calorias queimadas, que é o que interessa.
Quem corre seus males espanta. E que venha a Meia Maratona de Curitiba.
Desgraça pouca é bobagem.
Comentários