Quando meu filho estudou numa escola pública municipal
da cidade do Rio de Janeiro, ele era chamado, pejorativamente, por alguns
funcionários e pais de alunos, de “o menino da escola particular”. Havia um
sentimento de rancor e despeito pela presença de um “outsider”, de um menino de
pele clara, morador do “asfalto” da zona sul carioca que, até o ano anterior,
havia, sim, estudado num colégio particular das redondezas. Ele se contrapunha
ao perfil estereotípico de quem frequenta o ensino público, crianças de pele
mais escura, oriundos das camadas médias baixas e moradores das favelas,
eufemisticamente chamadas de “comunidades”. Meu filho era o algoz porque estava
“fora do lugar”, porque roubava a vaga de alguém que “realmente” precisava, que
não tinha outra opção que não a educação oferecida pelo Estado.
Aquela forma de tratamento, de estigmatizar, me causou
profunda contrariedade, mas, analisando friamente, o discurso dos “nativos” era
perfeitamente compreensível, embora condenável. A lógica por trás do incômodo
daqueles funcionários e pais se deve à noção de que a educação pública de
qualidade não é um direito básico fundamental do cidadão garantido pela
Constituição Federal, a Constituição Cidadã. A educação pública, não necessariamente de qualidade, uma esmola, uma caridade, é a
“raspa do tacho” de quem não consegue pagar pelo ensino privado. O Estado
brasileiro é visto como um inimigo porque, desde o fatiamento do território em
capitanias hereditárias, do assalto do espaço público por interesses privados, da
instituição da lógica “aos amigos, tudo; aos inimigos a lei”, do “você sabe com quem
está falando?”, o poder público – e a sociedade que o reflete indubitavelmente
- é, historicamente, patrimonialista, paternalista, elitista, autoritário e
violento.
Há uma visão de mundo compartilhada por boa parte dos
brasileiros – ricos, remediados ou pobres – baseada na ideia de que o Estado e
suas instituições tutelam e oprimem o indivíduo, tomado enquanto representação
simbólica da meritocracia, do “self-made man” que venceu na vida contra tudo e
contra todos, "apesar do Estado". O sonho dos pais que estigmatizaram o meu filho é ganhar dinheiro
e colocar seus filhos numa escola particular porque não se reconhece o Estado e
sua face humana, os servidores públicos, exatamente como aquilo que são,
servidores do público, inclusive os políticos responsáveis pelo cumprimento
constitucional relativo ao direito à educação pública de qualidade. É a “síndrome
de Gabriela”, o Estado sempre foi uma aberração e assim continuará. A
cidadania, nesta visão de mundo individualista, é definida pela capacidade de
consumo de cada um de nós. Darwinismo social.
Este masoquismo voluntário de quem precisa da atuação
do Estado, mas lhe tem ojeriza- na verdade, todos nós precisamos dele -, também
acontece na saúde. Conheço uma pessoa que passará por uma cirurgia para colocação
de prótese no quadril, e esse procedimento será realizado através do Sistema
Único de Saúde – SUS -, num hospital público. Está em depressão, toma remédios
controlados, porque a prótese custa cerca de quarenta mil reais e, apesar de “conhecer
alguém” (olha aí o jeitinho brasileiro!), a fila de espera pode chegar a quatro
anos. Apesar disso, acha que “tem que fechar o STF” e despreza o Estado, do
qual, ironicamente, agora, depende. Acredita piamente que a solução é
privatizar tudo mesmo.
Se soubesse que apenas o SUS realiza transplante de
órgãos; produz antídoto para animais peçonhentos; trata tuberculose e
hanseníase; distribui gratuitamente camisinhas e anticoncepcionais; dispõe
gratuitamente das vacinas obrigatórias do calendário elaborado pelo Ministério
da Saúde; responde pela Vigilância Sanitária, que fiscaliza bares e restaurantes;
trata hemodiálise e indivíduos soropositivos, talvez, quem sabe, mudasse sua
opinião sobre a importância do Estado para o bem-estar da população.
Nem sempre a ignorância é uma benção.
Comentários
Temos de manter ativo e eficiente o SUS pois é um direito de todos os cidadãos e embora estejamos com dificuldades momentâneas ele funciona e é um serviço de qualidade
Ariane