Miguel e a Tradição


Estávamos almoçando num simpático restaurante perto de casa. Miguel mandava brasa num prato de arroz, feijão, peito de frango grelhado e farofa – arrisco a dizer que esse é um de seus pratos favoritos – acompanhado de soda limonada. Papo vai, papo vem, um breve interregno entre os jogos virtuais no celular e os desenhos do Netflix, apenas pai e filho jogando conversa fora, ele observa as paredes adornadas com objetos antigos, dentre os quais um pequeno televisor preto e branco, e dispara:

- Papai, eu não quero fazer aquela cerimônia...

- Qual cerimônia, meu filho?

- Aquela cerimônia religiosa.

- Ah, você fala do Bar Mitzvah, que celebra a maioridade religiosa dos judeus aos treze anos de idade?

- Essa mesmo. Eu sei que é tradição, mas eu não quero.

- E você sabe o que é a tradição?

- É aquilo que se passa de geração em geração.

- Isso. A Tradição é tudo aquilo que a gente repete desde muito antigamente até agora, e esse muito antigamente pode ser tão muitíssimo antigamente que, às vezes, é até difícil determinar quando começou – tipo o Bar Mitzvah -, ou pode ser um antigamente novo, digamos assim, que a gente sabe dizer, mais ou menos, quando começou. Por exemplo: você encontrar seus amigos, nos finais de semana, para brincar, é uma tradição, ainda que tenha começado há poucos meses. É uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro. Mas só vale manter a tradição se ela fizer sentido, entendeu?

Então, contei pra ele como foi a minha experiência de celebrar a maioridade religiosa. Não tinha, à época, a menor vontade de atravessar o ritual, como ele, tampouco sofria qualquer tipo de pressão dos meus pais para manter a tradição. Na realidade, eu mesmo acabei me impondo pressão porque não queria ser o “diferente” da escola, o patinho feio, já que todos os meus colegas de sala “subiriam à Torá” – subiriam ao púlpito da sinagoga pela primeira vez para a leitura de uma passagem do Antigo Testamento. Fora isso, havia a promessa de muitos presentes, o que não era de se jogar fora.

Durante alguns meses, tive encontros semanais com o rabino de uma sinagoga próxima de casa. Nesta sinagoga, homens e mulheres sentam-se separados. Aprendi a ler as partes do texto sagrado correspondentes à semana em que o ritual ocorreria – a leitura do Antigo Testamento é dividida ao longo do ano -, e aprendi também a cantar as partes cantadas, na entonação meio esganiçada normal de um adolescente prestes a completar treze anos. Convidei um punhado de amigos, não a turma toda, e a recepção foi um almoço típico judaico. Tudo foi gravado em fita VHS, perdida para sempre depois que assaltantes invadiram nosso apartamento numa madrugada e levaram a televisão, o videocassete e um monte daquelas fitas sem qualquer valor comercial, “apenas” o sentimental.

A família Sant’Anna Gruman não é religiosa, muito antes pelo contrário. A parte judaica que me cabe prefere celebrar as festas enaltecendo seu caráter histórico e reforçando a relação da identidade judaica com a realidade mais ampla, para além das fronteiras simbólicas do grupo. A comida, obviamente, sempre presente, como elemento central do pertencimento étnico. A Tradição que procuro reproduzir e transmitir tem um caráter eminentemente laico. Daí, talvez, a falta de estímulo para que Miguel realize o ritual da maioridade religiosa, porque essa maioridade religiosa precisa fazer sentido para ele, e se ele já se coloca criticamente à religião – péssima influência paterna – não faz sentido celebrar algo em que não se acredita.

Mas vai deixar de ganhar um monte de presentes...





Comentários

Sonia disse…
Muito bom! É, a busca pelo sentido acaba sendo mais importante.