O vírus e a exclusão digital

Papai, eu estou muito empolgado para chegar logo o ano que vem, porque no sexto ano a gente vai usar o tablete na sala de aula pra fazer os exercícios”. Imaginem vocês meu espanto ao ouvir um menino de dez anos empolgadíssimo com o início do próximo ano letivo, às vésperas das férias de verão. Só mesmo a “chantagem digital” para operar tamanho milagre. Mais espantado ainda fiquei quando o rapazola me informou en passant que tínhamos de providenciar o equipamento, que ele fazia parte do material escolar, orientação da própria escola, causando-me estranheza, afinal, na lista que havíamos recebido não constava este totem, este fetiche da geração online. E, realmente, não era bem assim que a banda tocava. 

Para azar do Miguel, nosso tablete está quebrado. Mas a escola, como não poderia deixar de ser, prontificou-se a emprestar aos alunos que não puderem trazê-lo de casa ou que simplesmente não os tenham, não sendo este um item da cesta básica. No entanto, uma pulga atrás da orelha não me deixava em paz. Teria a escola uma quantidade satisfatória de tabletes aos excluídos digitais? E se a demanda fosse maior que a oferta? Leva quem chegar primeiro?  

Então, em conversa com a orientadora educacional, pude tranquilizar-me ao ouvir que, em caso de falta de equipamentos, os alunos despossuídos poderiam compartilhar aqueles dos colegas bem-aventurados, uma vez que boa parte dos trabalhos digitais seriam realizados em dupla ou em grupos maiores. Como “maioria” não significa “todos”, insisti sobre as situações em que, sendo a tarefa individual, os alunos sem tablete seriam prejudicados. Neste momento, minha interlocutora deixou escapar uma percepção equivocada do processo de elaboração da metodologia de ensino, ao ser questionada sobre a possibilidade, embora improvável, de falta de tabletes a todos os alunos, ao responder que “quase todos os alunos têm”. Claro como água, não podemos supor ou inferir nada se houver uma milionésima chance de um único aluno não ter acesso à ferramenta, a escola devendo adaptar-se à realidade dos alunos - “quase todos os alunos” bem nascidos filhos da classe média curitibana - e não o contrário.  

A vida acadêmica do Miguel seguia sem grandes sobressaltos quando entrou em cena o coronavírus. De uma hora para outra, a rotina escolar foi interrompida. As aulas passaram a ser ministradas, digamos assim, através da plataforma digital que os alunos já utilizam, desde o início do ano, para o envio de exercícios semanais, chamadas de “metas”. Inevitavelmente, o uso simultâneo da plataforma por centenas de alunos e a quantidade de material “subido” digitalmente pelos professores causaram inconvenientes, inúmeras “quedas” do sítio. Ao longo da primeira semana, uma equipe de Tecnologia da Informação - TI da escola trabalhou para a adaptação do sistema à nova realidade, alcançando relativo sucesso. A partir dessa semana, as professoras vão transmitir as aulas por “lives”, virtualmente, através de um aplicativo gratuito da Microsoft.  

Reconheço o esforço da escola em adaptar-se à nova realidade. Primeiro, em tornar mais “palatável” o ensino para crianças e adolescentes que sabem mexer nas novas tecnologias melhor do que nós, marmanjos antiquados e anacrônicos. Compreendo, portanto, a inovação metodológica ao introduzir tabletes na realização de tarefas de sala, bem como de plataformas digitais para a realização de “metas semanais”, além do estímulo a pesquisas em sítios os mais diversos, complementando o material didático preparado pelos professores. Não sou ludista, a tecnologia é bem-vinda e deve ser apropriada por todos nós, facilitando nossas vidas tanto quanto possível.  

Mas será que a facilidade acontece para todos?  

Claro que não, e a pandemia que está apenas começando nesses tristes trópicos veio escancarar uma obviedade ululante: a exclusão digital como reflexo da pornográfica desigualdade social brasileira. Dá-se “de lambuja” que os alunos da escola do meu filho têm acesso fácil e ilimitado à Internet de alta velocidade, daí a enorme frustração com a lentidão dos sítios, levando-se em consideração que os pais desses alunos, em grande parte, como é o nosso caso, está trabalhando remotamente, em casa, competindo com os filhos o uso da tecnologia.  

Quando paramos para pensar, concluímos que nós, remediados, reclamamos “de barriga cheia” porque a maioria dos estudantes brasileiros não têm sequer acesso à Internet em suas casas, quiçá de alta velocidade. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra  de Domicílios – PNAD do IBGE, em 2016 havia mais de 30% de domicílios brasileiros sem acesso à rede mundial de computadores. São verdadeiros excluídos digitais.  

Vivemos, realmente,  numa bolha.  


Comentários