Identidades caleidoscópicas: em defesa do “judeu errante”

De acordo com o historiador William Bouwsma (1990), a Europa ocidental viveu, no decorrer da Alta Idade Média, uma crise de ansiedade. Até aquele momento, as fronteiras sociais estavam bem delimitadas e a cultura medieval fornecia, de um modo geral, um mapa bem ordenado do sagrado e do profano. O meio urbano possibilitou a dissolução das fronteiras sociais impondo uma redefinição ou reconfiguração de identidades. A ansiedade se devia exatamente pela incerteza quanto ao porvir, pela ausência de uma ancoragem cultural que fornecesse um sentimento de harmonia e continuidade entre passado, presente e futuro, reproduzindo o idealismo de parte dos historiadores que viveram naquele período (séculos XIV e XV) e viam na cidade a fonte por excelência de corrupção moral em comparação com o passado agrário ordeiro e pacífico. 

O sistema de classificação que organizava as relações sociais de uma determinada comunidade passa a competir com outras formas de estabelecer o certo e o errado, separando o “puro” do “impuro”. O preço a ser pago pelo indivíduo ao escolher “viver em comunidade”, na opinião de Bauman (2003), se dá na forma da liberdade, também chamada de “autonomia”, “direito à auto-afirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, afirma, resulta num ganho de alguma coisa e na perda de outra. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, embora nunca inteiramente ajustados e sem atrito. A “comunidade” nos fornece segurança ontológica em troca da liberdade da auto-identidade, nos sentimos parte de alguma coisa, compartilhamos experiências com outros indivíduos ainda que tais experiências nos englobem por inteiro sem deixar margem de manobra para uma futura mudança de rota em direção à mesma sensação de segurança, em outro lugar. A “comunidade” é aconchegante, confortável, “é como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado” (Bauman, op.cit: 7). 

A concepção de “casa” utilizada pelo antropólogo Roberto Da Matta (2000) é bastante semelhante. Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral, esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um corpo físico e também uma dimensão moral e social, membros de um grupo fechado com fronteiras e limites bem definidos. A “comunidade” cumpre o papel de controlador dos movimentos do indivíduo na medida em que este indivíduo se submete às regras do grupo por livre e espontânea vontade. Ela significa “mesmice”, ou seja, a ausência do Outro, especialmente o que teima em ser diferente e por isso mesmo capaz de gerar incertezas quando à validade única dos princípios que regem os padrões de comportamento e o estilo de vida do lado de dentro da comunidade. Este Outro está “fora do lugar”, é a multiplicidade de experiências de vida que desafia a estabilidade e segurança ontológicas. A “mesmidade” encontra dificuldades quando há “fissuras nos muros de proteção da comunidade” (Bauman,op.cit:19). 

Neste momento, abrem-se as portas para o novo, aquilo que ainda não foi experimentado, para a busca do desconhecido. O sonho do porto seguro representado pela comunidade natural é substituído na modernidade pelo “moderno espírito de aventura”. A modernidade desafia a “comunidade” e os “comunitaristas”. A sociedade moderna multiplica o número de “casas” disponíveis, os espaços em que nos sentimos seguros e parte integrante de um grupo social. Por mais que a tradição se transforme de acordo com as circunstâncias, tentando manter intactas as fronteiras entre o lado de dentro e o lado de fora, há sempre em potencial o perigo de “tocar” em experiências que colocam em xeque a pureza simbólica das estruturas tradicionais. Permanecer na “tribo”, ou na “comunidade”, exige uma entrega do indivíduo aos princípios que regem o comportamento dos membros ou a admissão de que nem tudo está sob nosso controle. 

No clássico O homem marginal (1948), Everett C. Stonequist afirma que, quando os muros do gueto medieval foram postos abaixo e ao judeu foi permitido participar da vida cultural dos povos no meio dos quais vivia, apareceu um novo tipo de personalidade, um híbrido cultural. Era um homem que participava intimamente da vida e das tradições culturais de dois povos distintos, não querendo romper completamente com o seu passado e tradições e não sendo aceito inteiramente pela sociedade que abria suas portas. Era um homem à margem de duas sociedades e duas culturas, que nunca se interpenetravam e se fundiam. O judeu emancipado é, nesta visão, o primeiro cosmopolita e cidadão do mundo, o “homem marginal” por excelência. É um tipo de personalidade, mais do que um estado transitório tanto dos imigrantes quanto de seus descendentes. Uma alternativa às interpretações dadas por Stonequist ao fenômeno da marginalidade em indivíduos portadores de tradições distintas, pode ser a própria noção de “cosmopolitismo”. 

Em tempos de “pós-nacionalismo”, ser cosmopolita e “estrangeiro de tudo”, nas palavras de Nigel Rapport (2002), é um trunfo social. Falsas dicotomias desaparecem, por exemplo, “judeu ou brasileiro”, cada uma destas identidades sociais exercidas em circunstâncias específicas. Sem dúvida, em épocas de Copa do Mundo de futebol, os judeus cariocas vestem a camisa da seleção brasileira, ao mesmo tempo em que um grupo de amigos forma uma comunidade virtual intitulada “judeus flamenguistas”. É a pura bricolage, profanando o sagrado, destruindo e reconstruindo fronteiras sociais. Identidades complementares, não mais antagônicas. A noção de identidade como uma “celebração móvel”, definida histórica e não biologicamente, nas palavras de Stuart Hall (1999), se encaixam perfeitamente para o caso dos imigrantes judeus e seus descendentes. Não mais circunscritos às fronteiras comunitárias, criam os mais diversos vínculos com os mais diferentes estilos de vida, o que não invalida seu pertencimento ao judaísmo, pois têm a percepção de que é possível exercer múltiplas identidades na sociedade contemporânea, em que há a secularização de relações anteriormente sagradas. 

Nas palavras de um judeu carioca, casado com uma não judia (o casamento exogâmico é visto com “indiferença étnica” por boa parte dos judeus brasileiros), “eu sou brasileiro e judeu, ou sou judeu e brasileiro. Vai depender um pouco do momento em que eu esteja, que eu precise me posicionar”. Os judeus não mais detêm o monopólio sobre os instintos de viagem ou de cosmopolitismo, “isso, se eles já o detiveram algum dia”, segundo Rapport. A sociedade moderna transforma hóspedes em anfitriões e vice-versa. A reciprocidade e periodicidade de papéis de anfitriões e hóspedes conduzem a um estado no qual nenhuma das partes está absolutamente “em casa” em lugar nenhum. Há um reconhecimento de que a fluidez das noções de anfitriões e hóspedes significa a realidade da hospedagem mútua como papel normativo no espaço social: “onde quem está “em casa” é uma questão da natureza e do intuito das trocas particulares, mais do que de identidades absolutas” (Rapport,op.cit:9). O caráter “cigano” da “judaicidade” deixa de ser uma qualidade negativa. 

O cosmopolitismo é parte da condição moderna, daí não fazer mais sentido falarmos num “judeu errante” se todos os indivíduos modernos são, em graus diversos, errantes. A “judaicidade” deixa de ser um ethos específico de um grupo específico. Todos nós somos cosmopolitas, cidadãos do mundo. Nossas identidades são formadas a partir de avaliações feitas por nós mesmos e dos espelhos dos julgamentos feitos pelos outros (Strauss,1999). Acionamos códigos particulares, terminologias simbólicas específicas para dar conta de cada situação apresentada. A cada uma delas, atualizamos valores e comportamentos que nos dão a sensação de pertencimento ao grupo que nos avalia. No entanto, pela multiplicidade de identidades sociais possíveis de serem desempenhadas no ambiente urbano, muitas vezes utilizando sistemas simbólicos contraditórios, deve-se ter em mente que a inserção em cada “província de significado” é legitimada e justificada apenas num período de tempo determinado. A “coerência” deve ser buscada em cada situação social específica, muitas vezes estanque, daí que visões de mundo “modernas” e “tradicionais” podem fazer parte do arsenal simbólico de qualquer indivíduo. A utilização desta ou daquela terminologia dependerá do contexto construído circunstancialmente. Experimentar situações distintas apresentando em cada uma delas uma determinada máscara social faz parte deste mundo de escolhas característico da era moderna.

Somos confrontados com uma “pluralização dos mundos da vida” ou “setores do estilo de vida” (Giddens,1998) para os quais necessitamos de ferramentas simbólicas particulares de modo a sermos reconhecidos como um membro daquele ambiente de ação específico. Daí a importância da interação social na construção dos espaços simbólicos onde expressamos nossa existência humana em termos de múltiplas identidades. A fragmentação da realidade não deve ser entendida como um estraçalhamento psicológico inexorável do indivíduo na medida em que o trânsito entre os diferentes níveis de realidade é possível graças à natureza simbólica da construção social da realidade. Talvez, seguindo Hermano Vianna (1999), possamos pensar no indivíduo metropolitano como o terno personagem de Fernando Pessoa, partindo do princípio de que somos todos transeuntes “de tudo”, de que nada nos diz nada e criando um espaço de compreensão do modo de vida e da visão de mundo dos Outros. 

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. 2003. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. BOUWSMA, William. 1990. A usable past: essays in European cultural history. Berkeley/Los Angeles: University of California Press. DAMATTA, Roberto. 2000. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco. GIDDENS, Anthony. 1998. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP. HALL, Stuart. 2000. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. RAPPORT, Nigel. 2002. “Em louvor do cosmopolita irônico: nacionalismo, o ‘judeu errante’ e a cidade pós-nacional”. In: Revista de Antropologia v.45 n.1. São Paulo. STONEQUIST, Everett. 1948. O homem marginal: estudo de personalidade e conflito cultural. São Paulo: Martins Fontes. STRAUSS, Anselm. 1999. Espelhos e máscaras. São Paulo: EDUSP. VIANNA, Hermano. 1999. “Ternura e atitude blasé na Lisboa de Pessoa e na metrópole de Simmel”. In: VELHO, Gilberto (org.). Antrop

Comentários