“(In) diferença” por excesso? O lugar das identidades na contemporaneidade



Defrontamo-nos, hoje, com uma série de alterações ocorridas na natureza da cultura, tanto nas experiências cotidianas quanto nas práticas estéticas. Para uma vertente das ciências sociais, esse novo mundo, chamado de “pós-moderno”, é qualitativamente distinto do anterior, caracterizado pelo predomínio do consumo sobre a produção, pelos estilos de vida e constituição de identidades em profusão, desmaterialização de objetos e mercadorias e da sociedade como um todo. As mercadorias exibem um componente imaterial de maior peso, incluindo a extensão da “estética da mercadoria”, de modo que grande parte de um produto parece compreender embalagem e imagens de propaganda. A pós-modernidade apóia-se nas tendências da cultura de consumo que favorecem a estetização da vida, a suposição de que “a vida estética é a vida eticamente boa, de que não existe natureza humana nem o eu verdadeiro e de que o objetivo da vida é uma busca incessante de novas experiências, novos valores, novos vocabulários” (FEATHERSTONE, 1995:174).

Neste artigo, exploro algumas das contribuições teóricas que as ciências sociais nos oferece para a compreensão das relações sociais na sociedade contemporânea. Tentarei, na medida do possível, apresentar as principais idéias daqueles que esposam a tese de que vivemos a chamada “pós-modernidade”, sua pertinência e limites. Ou seja, em que medida podemos afirmar que, nos dias que correm, os indivíduos são indiferentes uns aos outros e, por que não, a si próprios? Eles anulam suas identidades por conta de um excesso de signos, significados, significantes? Ou, apesar da instantaneidade e efemeridade das experiências, ainda há espaço para o compartilhar de experiências e valores, da identificação com o outro, de nele se ver? Até      que ponto o excesso nos leva à indiferença com aquilo e aqueles que nos cercam?

O triunfo da cultura da representação resulta, segundo os teóricos da “pós-modernidade”, num “mundo simulacional” no qual a proliferação de signos e imagens aboliu a distinção entre real e imaginário e nivelou as hierarquias simbólicas, transformando a realidade em imagens e série de presentes contínuos, presentes perpétuos. O tempo e a história não mais constituiriam uma lógica ou contexto de mudança compreendendo processos e relações sociais reais, onde a segunda se vê reduzida a significantes – estilos, referências, imagens, objetos – que circulam independentemente de seus contextos originais como na imagem da “aldeia global” (SLATER, 2002). O processo de “desdiferenciação” dos objetos, a implosão entre signo e realidade seria uma prova de que a experiência contemporânea “não tem profundidade”, ou seja, não há nada em que se possa acreditar por baixo ou além da “paisagem rasa da significação interminável” (SLATER, op.cit) embora as pessoas “deliciem-se com o fato de que tais signos são artificiais, opacos e 'sem profundidade', no sentido de que não podem ser decodificados de forma a dar acesso a qualquer significado revelador ou a uma noção de verdade fundamental (FEATHERSTONE, op.cit: 141). A vida social fica desregulada e as relações sociais tornam-se mais variáveis e menos estruturadas por normas estáveis.

A realidade estetizada é resultado do acúmulo de signos, imagens e simulações por meio do consumismo, onde é possível constatar uma ênfase na ausência de mediações e intensidade das sensações auditivas e visuais, proporcionando “prazeres caóticos e dispersos para sujeitos descentrados” (FEATHERSTONE, op.cit:140). Na sociedade pós-moderna, a sedução torna-se o processo geral que regula o consumo, as organizações, a educação e os costumes, destronando o primado das relações de produção em proveito de uma “apoteose das relações de sedução” (LIPOVETSKY, 1983:17) e fornecendo uma “profusão luxuriante” de produtos, serviços e imagens. A cultura do consumo se assemelha à uma festa à fantasia “onde vestimos nossa vida cotidiana com roupas sempre diferentes, tiradas de um guarda-roupa inesgotável e levados por impulsos que se inspiram, eles próprios, na vida da festa, e não na vida fora dela” (SLATER, op.cit: 191). A oferta excessiva de bens simbólicos nas sociedades ocidentais contemporâneas e tendências para a desclassificação e desordem culturais exigem disciplina e controle para passear entre as mercadorias e, embora as imagens possam evocar prazeres e perturbações, é necessário ter autocontrole para vivenciá-las.

A superpopulação de signos e sua conseqüente saturação e liqüefação resulta na perda de significados estáveis. O “deserto pós-moderno”, esvaziado de grandes valores e finalidades, de referências estáveis e coordenadas principais, é feito de uma “indiferença por excesso” (LIPOVETSKY, op.cit:38) por conta da pletora de informações que, tão logo registradas, são esquecidas e varridas de cena por outras ainda mais interessantes e espetaculares. Os consumidores se apresentam como meros “acumuladores de sensações” cuja satisfação deve ser instantânea devido ao caráter efêmero, volátil e precário da produção, num mundo onde as placas de sinalização não são firmes mas pontos de referência sobre rodas que somem da vista antes de termos tempo de ler (BAUMAN, 1999). Ao mesmo tempo, o estado de constante ansiedade e a pronta insatisfação ocorre porque o desejo se apresenta como objeto de consumo e, por isso mesmo, fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a pilha de objetos adquiridos.

            O desejo deseja desejo, e o ciclo nunca se fecha. A promessa e a esperança de satisfação precedem a necessidade que se promete satisfazer e serão sempre mais atraentes que as necessidades efetivas, quer dizer, a satisfação nasce da expectativa do prazer que transcende a “realidade” numa espécie de “hedonismo imaginativo” (URRY, 1999). No entanto, como a “realidade” jamais poderá propiciar os prazeres com que os indivíduos se deparam em seus devaneios, sonhos e fantasias, cada compra conduz à desilusão e ao anseio por produtos ou experiências mais novos e atraentes. “Existe uma dialética da novidade e da insaciabilidade no âmago do consumismo contemporâneo” (URRY, op.cit:30). O indivíduo “pós-moderno” se apresenta como um caçador de emoções e colecionador de olhares, imerso num mundo com o qual se relaciona esteticamente percebendo-o como um alimento para a sensibilidade, matriz de possíveis novas experiências. Podemos imaginar esse mundo como um container cheio até a boca com uma quantidade incontável de oportunidades a serem exploradas ou já perdidas ou como uma mesa de bufê com pratos deliciosos obrigando o indivíduo-consumidor a estabelecer prioridades (BAUMAN, 2001). O excesso de escolhas, por mais paradoxal que seja, é, para esta personagem, motivo de ansiedade, insatisfação e felicidade.

Se o problema moderno da identidade era como construí-la e mantê-la sólida e estável, escapando das incertezas, o problema pós-moderno é como evitar a fixidez e manter as opções em aberto. A palavra chave da Modernidade é “criação”, de preferência em aço e concreto, ao passo que a epítome da Pós-Modernidade é “reciclagem” a partir do plástico biodegradável; a primeira utilizando papel fotográfico e a segunda, videotape (BAUMAN, 1996). A atenção passou da concepção de estilos de vida como conjuntos relativamente fixos de disposições, gostos culturais e práticas de lazer que demarcam fronteiras entre os grupos, para a suposição de que os estilos de vida formam-se de maneira mais ativa. No entanto, a ausência de valores e pontos de referência estáveis que sirvam de alicerce à “realidade” e o fluxo de códigos utilizados por esses mesmos sujeitos ativos pode levar à esquizofrenia, à ruptura na relação entre significantes e à fragmentação do tempo numa série de presentes perpétuos. O sujeito esquizofrênico da pós-modernidade habita um tempo puramente presente, participa de uma cultura do presente absoluto e é incapaz de formar um ego coerente.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, mais as identidades se tornam desvinculadas de tempos, lugares e tradições específicos. A difusão do consumismo contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”, onde somos confrontados por uma gama de diferentes identidades dentre as quais parece ser possível fazer uma escolha. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma “espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas” (HALL, 2000:75). O turista, tal qual Narciso, é produto de um individualismo hedonista, cuja identidade é esvaziada por conta do excesso de signos e experiências disponíveis. A sociedade contemporânea, para a pós-modernidade, é liquida porque, como os líquidos, é caracterizada pela incapacidade de manter a forma.

O envolvimento com pessoas e lugares é epidérmico e superficial; estético, e não moral. As relações sociais são como episódios, eventos sem quaisquer marcas duradouras. A vida, como um presente contínuo, se assemelha a um jogo cujas regras não param de mudar ao longo da disputa, exigindo do jogador (outra caracterização do indivíduo pós-moderno) o melhor de si com as cartas que tem na mão. A necessidade imperiosa de adequar-se às novas experiências onde elas estiverem exige a eliminação de compromissos de longa duração porque, quanto menor o envolvimento com pessoas que encontramos no meio do caminho, mais fácil será no momento de partir. O estilo de vida do indivíduo pós-moderno, seja ele turista ou jogador, transforma-se nesta perspectiva no arquétipo dos novos tempos. As relações humanas são vistas de modo fragmentado e descontínuo em oposição às redes estáveis de deveres e obrigações mútua, promovendo desta forma um distanciamento entre o indivíduo e o “outro”, ao classificá-lo como objeto de avaliação estética e não moral.

Sem dúvida alguma percebemos no mundo das relações sociais uma exacerbação daquilo que Georg Simmel chamou de “ar blasé”, uma indiferença ou reserva diante da vida alheia, das pessoas e das coisas, revelando um processo de socialização que dessocializa ao colocar o indivíduo num social pulverizado. Alguém que é assaltado num ponto de ônibus cheio e não é socorrido por nenhum transeunte, o desvio do olhar no elevador ou no vagão de metrô no horário de pico e até mesmo a distância que se dá numa sala de cinema, escolhendo uma poltrona que não seja contígua a de outro espectador, ou a “invisibilidade” de mendigos e pedintes com quem nos deparamos nas grandes cidades são todos exemplos concretos de como se dá, na prática, a atitude de reserva psicológica e indiferença moral com relação ao “outro”.

No entanto, não é possível falarmos apenas de estilos de vida individualizados e “egoísmo narcísico” se os supermercados reais vendem produtos voltados para públicos reais em seções específicas da loja, cujo consumo reforça a identidade coletiva calcada em valores e memória comuns. Os judeus religiosos acham produtos alimentícios preparados de acordo com as regras alimentares apropriadas (chamada kashrut), a televisão anuncia um sabonete específico para negros e revistas propagam uma estética “afro” na tentativa de afirmar uma identidade historicamente marginalizada.

Há algum tempo, um anúncio na televisão exortava os telespectadores a consumirem determinada bebida refrigerante alegando que “imagem não é nada, sede é tudo”. Esta frase resume magistralmente tudo o que foi escrito acima a respeito da “implosão de fronteiras e hierarquias sociais”, da redução dos objetos a meros significantes sem ancoragem na “realidade” e da existência de sujeitos esquizofrênicos que buscam nas prateleiras dos “supermercados culturais” a satisfação de suas expectativas geradas em fantasias e sonhos. A estética passa a regular as relações de consumo e as relações sociais, elas mesmas mediadas por uma cultura de consumo. Esta tendência, entretanto, nem sempre se reflete na vida social da maneira como os teóricos da pós-modernidade preconizam, ou melhor, carrega consigo uma contra-tendência que nos traz um alento do tipo “nem tudo está perdido!”. No caso da publicidade, a proibição da veiculação de propagandas de cigarro na televisão, cujas imagens evocam uma vida saudável impregnada de esportes e bem-estar físico, é uma prova de que questões éticas, e não estéticas, tiveram um peso decisivo no processo. Há relativamente pouco tempo, os maços de cigarro têm impresso na lateral uma advertência do Ministério da Saúde a respeito dos males que o fumo causa ao organismo junto com imagens (imbuídas de uma mensagem moral, sem dúvida) que denigrem o hábito de fumar, como é o caso de um doente terminal num leito de hospital por conta de câncer no pulmão ou uma moça que expressa desagrado com o mau-hálito de seu interlocutor fumante. À relação entre consumo e estética devemos incorporar a relação entre consumo e ética.

Em seu estudo sobre o ato de comprar numa região da região norte de Londres, Miller (2002) conclui que esta prática tem uma estrutura ritual envolvida na criação de valor e de relacionamentos, e rebate as discussões sociológicas recentes que, segundo o autor, costumam usar o ato de comprar “como um símbolo conveniente para nos condenar a alguma espécie de superficialidade pós-moderna dedicada ao materialismo sem propósito” (p.126). Os objetos envolvidos nas trocas são meios para se criar relacionamentos de amor entre os sujeitos e intensificar os valores sociais e não algum tipo de “beco sem saída materialista”, uma vez que o grosso do abastecimento doméstico “está relacionado a um estado de relacionamento vigente, uma constância subjacente complementada por um humor, um compromisso, um sorriso, uma punição, um gesto, um consolo, todas as minúcias que formam as nuanças em constante mutação de um relacionamento social” (p.154). No ato de comprar, o objeto constitui o relacionamento transcendendo as identidades isoladas dos indivíduos envolvidos no processo e a compra mesma deixa de ter um sentido puramente estético, mas impregnado de valores, de tradição, de histórias de família.

Os ideólogos da pós-modernidade acreditam que vivemos numa “aldeia global” onde não mais existe a diferença entre realidade e significado; num “deserto” esvaziado de valores, referências estáveis, onde as identidades se tornam desvinculadas de tempos e tradições específicas; num “supermercado”, onde o consumismo achata diferenças e distinções culturais. Tal interpretação é semelhante àquela imputada à chamada “globalização”, responsável pela homogeneização da cultura. Nada mais incorreto, porque as mensagens e os valores embutidos nas imagens e nos produtos consumidos são interpretados e reinterpretados pelos receptores. Ou seja, um comercial da Nike ou do McDonald's é lido pelos olhos de quem o vê, e não de quem o emite. Na Índia, por exemplo, os sanduíches do McDonald's respeitam as regras alimentares do hinduísmo (não se usa carne de vaca) e em Israel a preparação segue os preceitos alimentares da religião judaica. Consome-se uma identidade, incorporam-se alimentos não só para o corpo, também para a alma.

Sigo a sugestão de Ortiz (1998), para quem o termo “globalização da cultura”, estigmatizado e estigmatizante, deve ser substituído por “mundialização da cultura”, quer dizer, apesar de o processo de globalização econômica e tecnológica ter uma importância capital para a compreensão da cultura no mundo contemporâneo, a esfera da cultura guarda um elemento de autonomia que nos permite pensá-la em sua especificidade. A esfera mundializada da cultura é plural e diversificada. Novamente tomando os judeus como exemplo, qual deles poderia imaginar um jantar judaico voltado para o público juvenil à base de sushis e sashimis? Ou um judeu religioso, vestido com a capota preta e fartas barbas, cantando reggae com letras que falam de religião? A identidade judaica não se perde com a incorporação de hábitos alimentares surgidos num país “exótico”, muito pelo contrário, são ressignificados pelo grupo e transformados em atributo étnico. O mesmo acontece com um estilo musical identificado com a chamada “negritude”.

Vimos que a pós-modernidade caracteriza-se, de acordo com seus ideólogos, pela estetização da vida a partir da proliferação de signos e imagens cuja conseqüência é a abolição entre o real e o imaginário, transformando a realidade em imagens e série de presentes perpétuos. O “deserto pós-moderno” é esvaziado de valores e finalidades, a oferta excessiva de bens simbólicos seria propicia a desordens culturais, implodindo fronteiras identitárias pretensamente estáveis. O indivíduo pós-moderno é esquizofrênico porque vive um presente eterno, participando de uma cultura do presente absoluto. É um mero “acumulador de sensações”, um “caçador de emoções”. As relações sociais são episódicas, superficiais. Por outro lado, vimos que o consumo, seja de um judeu religioso, de um negro brasileiro ou de uma dona-de-casa moradora de um subúrbio de classe média londrino, envolve muito mais do que a compra e as sensações, é impregnado de valores. Consomem-se identidades, como é o caso de redes de lanchonete fast-food em países cuja população (ou boa parte dela) tem, na religião, um dos pilares de seu estilo de vida. Consumo e identidade, aqui, andam de mãos dadas.

O consumo e a construção de identidades, interpretados como práticas culturais dotadas de significados, retira da pós-modernidade sua aura de fato inexorável, inescapável, vista mais como instrumento analítico do que chave explicativa transcendente à realidade social. Ainda há luz no fim do túnel, apesar dos niilistas de plantão.

Referências bibliográficas

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FEATHERSTONE, Mike. 1995. Cultura de consumo e pós-modernismo. SP: Studio Nobel.

HALL, Stuart. 2000. A identidade cultural na pós-modernidade. RJ: DP&A.

LIPOVETSKY, Gilles. 1983. A era do vazio. Lisboa: Gallimard.

MILLER, Daniel. 2002. Teoria das Compras. SP: Studio Nobel.

ORTIZ, Renato. 1998. “Cultura e Sociedade no Brasil”. In: FRANCESCHI, Antonio de. Et al. Marketing cultural: um investimento com qualidade. SP: Informações Culturais.

SIMMEL, Georg. 1973. On individuality and social forms. Chicago: The Chicago University Press.

SLATER, Don. 2002. Cultura do consumo e pós-modernidade. SP: Studio Nobel.

URRY, John. 1999. O olhar do turista. SP: Studio Nobel.

Também disponível em: https://espacoacademico.wordpress.com

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