A cultura como não-problema

Desde o primeiro ano do governo do ex-presidente Lula o Ministério da Cultura, aquele que sempre foi considerado o “patinho feio” da Esplanada, vinha engordando timidamente o seu cofrinho. É verdade que nunca se aproximou da meta proposta pela Agenda 21 e ratificada pela UNESCO de dispêndios estatais em cultura na ordem de 1% do orçamento da União, o que não impede de louvarmos a consideração dos poderes executivo e legislativo por um setor da sociedade brasileira até então considerado “acessório” às grandes questões nacionais. O reconhecimento objetivo da cultura refletia a maneira como o Estado passou a compreendê-la, não mais a “cereja do bolo”, mas o substrato da identidade de cada habitante do país, da forma como cada um se vê e quer ser visto pelos outros.
Na realidade, passou-se a operar com o conceito de cidadania cultural, significando que não basta ter uma vida socialmente digna, como culturalmente satisfatória. Este conceito passou a nortear as diretrizes das políticas públicas de cultura do MinC, sobretudo a partir da criação da Secretaria da Identidade de Diversidade – SID. Em 2010, os recursos do MinC minguaram a 0,23% do total dos impostos arrecadados pela União, ainda que seu orçamento tenha sido o mais robusto desde 2003.

Em 2011, primeiro ano do governo de Dilma Rousseff, houve um corte de cerca de R$ 160 milhões (de R$ 2,29 bilhões para R$ 2,13 bilhões).  Recentemente, a imprensa divulgou notícias que dão conta de um novo corte orçamentário, previsto para o ano de 2012, este ainda mais profundo, diminuindo a verba do Ministério da Cultura em mais cerca de R$ 340 milhões (queda de 16% em relação ao ano anterior). No entanto, segundo Vitor Ortiz, secretário-executivo do MinC, há a possibilidade de engordar os recursos em até R$ 600 milhões com a aprovação de emendas parlamentares à Lei Orçamentária Anual – LOA. Destaco uma frase emblemática do secretário-executivo, que servirá de gancho para o meu argumento nesta curta reflexão: “Todo governo tem prioridades, e é daí que vêm as variações de cada pasta”.
Podemos trocar o termo “prioridades” por “problemas”, com o mesmo sentido atribuído pelo secretário-executivo do MinC. A razão por que alguns problemas recebem mais atenção do que outros por parte das autoridades se encontra tanto nos meios pelos quais esses atores tomam conhecimento das situações quanto nas formas pelas quais essas situações foram definidas como problemas. As pessoas, dentro e fora do governo, reconhecem os problemas de diversas maneiras. Em geral, são situações que colocam em cheque valores importantes para uma dada comunidade. O reconhecimento de problemas é um passo crítico para o estabelecimento de agendas. A construção da agenda envolve, portanto, um processo de especificação de alternativas. Nesse processo, restringe-se o grande conjunto de possibilidades a um grupo menor, a partir do qual as escolhas são, realmente, efetuadas. A ideia de inclusão na agenda, em geral, refere-se ao estudo e à explicitação do conjunto de processos que levam os fatos sociais a adquirirem status de problema público.
A maneira pela qual os problemas são reconhecidos – se são reconhecidos – determina a relevância com que eles serão tratados. Uma enorme variedade de fatores políticos, sociais e ideológicos determina quais problemas ganham acesso à agenda de políticas públicas. Dessa forma, a formação da agenda, suas questões prioritárias, pode surgir de campos distintos: de grupos não governamentais e daí se expandem até a agenda do governo; os lideres políticos iniciam a política pública, mas precisam de apoio do povo para sua implementação e tentam passar o tema da agenda formal para a agenda pública; de grupos influentes com acesso especial aos tomadores de decisão iniciam uma política pública, e não necessariamente querem que ela seja expandida e contestada pelo povo.  Desdobramentos na esfera política são poderosos formadores de agenda. Por exemplo, um novo governo muda as agendas, completamente, ao enfatizar suas concepções dos problemas e suas propostas. Portanto, é bem menos provável que assuntos que não estejam entre suas prioridades recebam atenção.
Quando uma questão ou demanda deixa de ser um difuso estado de coisas e se transforma em um problema político prioritário, ela passa a compor a agenda governamental. A partir desse momento, tem início a formulação de alternativas, quando os atores expressam claramente suas preferências e interesses. A formulação de políticas envolve um processo de definição, consideração, rejeição ou aceitação das opções de políticas a serem adotadas. Desse modo, as alternativas começam a ser formuladas, e as aspirações e necessidades expressas pelas demandas assumem a forma de expectativas quanto à resolução de um problema. Há atores que esperam obter vantagens com uma decisão, e outros que acreditam que essa decisão lhes será desfavorável. A partir dessas expectativas, os atores mobilizam-se para defender seus interesses e promover as alternativas de políticas que lhes sejam favoráveis.
Dois fatores podem influenciar a construção da agenda e a especificação de alternativas: os atores ativos e os processos pelos quais alguns assuntos ou itens sobressaem. Os atores ativos são os governamentais – executivo, parlamentares, funcionários do congresso, dentre outros. Possuem como recurso a autoridade legal, a publicidade e a longevidade. Os não-governamentais estão divididos em agentes externos, partidos políticos, grupos de pressão, opinião pública, mídia etc. O tipo do grupo de pressão influencia mais ou menos na construção da agenda. Para que uma ideia entre na agenda, é necessário que seja factível tecnicamente; seja aceitável pelos especialistas; passe pelo critério do público, para, então, formar consenso. O consenso na arena política é obtido por meio da barganha, entretanto, no processo de formulação de políticas, a capacidade de incluir determinado assunto na agenda não é igual para todos os atores. Determinadas categorias sociais possuem recursos de poder muito superiores a outras.
Retomando a afirmação de Vitor Ortiz, podemos estabelecer uma comparação entre os momentos vividos pelo MinC em 2003 e 2011. No primeiro, a cultura foi alçada ao status de problema público, entrando na agenda governamental e alvo de políticas públicas de médio e longo prazo. Atores de dentro e de fora do governo contribuíram na construção de alternativas ao “problema da cultura”, da sua marginalização frente às demais áreas de atuação do Estado brasileiro. Marginalização não só em termos financeiros, com orçamentos exíguos, mas, sobretudo simbólica, de não-reconhecimento da cultura como direito humano fundamental. O que observamos neste segundo momento é o rebaixamento da cultura a não-problema, uma vez que, como o próprio secretário-executivo admitiu, há outras prioridades para o atual governo. Esta reviravolta desagradável é comprovada, objetivamente, pela redução do orçamento da pasta para o ano de 2011 e a previsão de novo corte para o ano de 2012.
Resumo da ópera: ou os atores ativos, como a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura, deputados e senadores simpáticos às demandas do setor cultural e os próprios dirigentes do Ministério da Cultura, em conjunto com os atores não-governamentais, se articulam em defesa de uma agenda positiva e ativa para o MinC, demandando cada vez mais investimentos, ou ficaremos dependentes e à reboque dos favores de mecenas pós-modernos que financiam a cultura quando, como e com quanto bem entendem. A cultura não pode permanecer como um eterno “estado de coisas”.

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