Racismo sem raça: a falácia do multiculturalismo

Recentemente tive a oportunidade de ler o livro de Joel Rufino dos Santos, O que é racismo(Editora Brasiliense, 2005), em que o emérito professor questiona eficientemente a utilização do conceito de “raça” na justificativa de hierarquizações entre os seres humanos. Logo no primeiro capítulo afirma que aquilo que chamamos de “raça” é apenas um elenco de características anatômicas (cor da pele, textura do cabelo, altura média dos indivíduos) e que se pudéssemos excluir da análise a anatomia, veríamos “por dentro” um elenco de características genéticas que pouco tem a ver com as características exteriores. Veríamos “raças invisíveis”, formada por indivíduos de diferentes tonalidades de cor de pele. O professor Joel Rufino dá um exemplo concreto desta teoria:
Um turista, maravilhado diante das Escolas de Samba, poderia dizer: “Os negros são os melhores dançarinos do mundo”. Está bem, os turistas têm o direito de dizer o que quiserem, mas cientificamente a frase é um equívoco. O correto seria dizer: “Há grupos de negros que são melhores os dançarinos do mundo”. Quem já viu, boquiaberto, numa tela de cinema, o branquíssimo Charles Chaplin fazer do corpo o que queria, ao som de uma banda da roça, não pode achar que “brancos não dão para dança”. Chaplin possivelmente pertencia a uma “raça invisível” tão dançarina quanto a de muitos negros do Rio de Janeiro. (grifo do autor)

Pretos e brancos são apenas conjuntos de indivíduos que tem essas cores, podendo o sujeito negro estar biologicamente mais próximo de um branco do que de outro sujeito preto. Assim, apesar de aparentemente tola, a pergunta “o que é um grupo racial?” acaba por confundir mais do que esclarecer, porque indivíduos anatomicamente “iguais” não são, necessariamente, de “raças” distintas. Isto vale, seguindo o raciocínio do intelectual, para pretos, brancos, japoneses, brasileiros, angolanos, indígenas, dinamarqueses, italianos e judeus.
Ninguém confunde um preto com um branco, um índio com um japonês e, se for um bom observador, não confundirá, também, um judeu com um italiano. Nenhum desses grupos de pessoas é, porém, uma raça. (grifo meu)
Textos como o do professor Joel Rufino são de extrema relevância no combate ao racismo e à discriminação que permeia a sociedade brasileira, o que não equivale a dizer, e é bom que fique claro, que a sociedade brasileira seja racista. Devemos louvá-lo tanto por seu caráter teórico, combatendo cientificamente aqueles que se julgam biologicamente superior porque se recusam acompreender o “outro”, seus valores e modos de vida, quanto por sua linguagem didática. A mensagem é clara: comportamentos e valores, representações simbólicas são socialmente aprendidas, nada tendo que ver com determinismos biológicos.
No entanto, me chamou a atenção um trecho que, para a maior parte dos leitores, acredito, passou despercebido porque secundário, visto que a oposição branco/preto é o foco do argumento. O historiador diz a certa altura que índios e judeus não são raças, mas povos. E explica que povos são “grupos de pessoas de raças distintas que vivem juntas num mesmo território”. Ademais, conforme grifado acima, acredita que um bom observador não confundirá um judeu com um italiano. A utilização dos termos “raça” e “povo” para qualificar os judeus me soa bastante problemática, para dizer o mínimo. Tentarei interpretar as explicações a respeito dos judeus a partir de duas linhas de raciocínio que podem ou não coincidir com as do professor.
A primeira, segundo a qual seria “tolice” negar diferenças entre pretos e brancos bem como entre judeus e italianos, confirmaria a ideia de que há um fenótipo “judeu”, características físicas especificamente “semitas”. Seria o nariz adunco? As mãos em forma de garra, como as aves de rapina? Por outro lado, quais as características físicas dos “italianos”? Estas, eu não me arrisco, confesso minha ignorância. Não acredito que o professor Joel Rufino comungue destes estereótipos, porque reproduzem o preconceito que tanto combate, colocando-o ao lado de figuras como Oliveira Vianna (Raça e Assimilação), Raimundo Nina Rodrigues (As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil) e o Conde de Gobineau (Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas), que relacionavam traços físicos a comportamentos sociais ou antissociais.
Sendo um povo, e esta é a segunda linha de raciocínio, teria características culturais específicas, a despeito de não apresentar um “rosto” singular. Mas, então, é ou não é possível diferenciar fisicamente judeus de italianos e, quiçá, de muitos outros grupos humanos? Ademais, de que território nos fala? De Israel? Isto é determinismo geográfico, há judeus pelo mundo todo. E, se o aglomerado de “raças” moldou um “rosto” judeu singular, como explicar a negritude dos judeus etíopes, a brancura dos judeus poloneses, os olhos puxados dos judeus chineses, a “morenice” de sol dos judeus tupiniquins? E as diferenças culturais entre judeus ashquenazitas e sefaraditas? Será realmente possível distinguir, na praia de Ipanema, num dia de verão escaldante, jovens judeus e não judeus, física e culturalmente?
Fiquei bastante confuso com as classificações que o professor Joel Rufino fez dos judeus. De forma alguma afirmo ou acredito que ele reduza-os a determinadas características físicas ou culturais, porque isto viria de encontro a toda a argumentação exposta ao longo de seu livro. No entanto, o exemplo dos judeus pode ensejar más interpretações e levanta uma questão que considero da maior relevância na atual conjuntura brasileira de afirmação de identidades historicamente marginalizadas, de respeito à diversidade cultural, do multiculturalismo.
Acredito que o Estado brasileiro, como responsável primeiro pela elaboração das políticas públicas para a cultura, deve se proteger de ideologias que pregam o determinismo cultural revestido de “respeito às diferenças”, em nome de uma pretensa democracia cultural, quando na realidade advogam o determinismo cultural e, de quebra, o determinismo biológico e geográfico. O racismo foi substituído por um conceito de multiculturalismo de corte norte-americano que nada mais é que racismo sem raça. É, na melhor das hipóteses, racialismo. Negro tem samba no pé, branco toca violino e índio faz pajelança. Será? É possível existir escolas de samba sem negros? A “cultura negra” é “negra” porque seus “portadores” tem a pele escura? Porque teve origem na África?
Em sua coluna do dia 19 de dezembro de 2011 no jornal O Globo, o jornalista Ancelmo Gois publicou uma nota intitulada “A falta de negros”, na qual afirma que “as escolas de samba continuam reclamando da falta de negros. É que, em 2012, Portela, Beija-Flor e Vila Isabel, que desfilam no domingo, levarão à Sapucaí temas ligados à cultura negra — e não há afrodescendentes suficientes para as alas”. Hipótese: um casal brasileiro “branco” migra para Uganda, lá tem um filho e, depois de certo tempo, decidem retornar ao Brasil. Pergunta: o filho, branco e africano, poderia desfilar na Portela, na Beija-Flor ou na Vila Isabel? A cultura está relacionada à cor da pele (anatomia/biologia)? Ao continente (geografia)?
O multiculturalismo brasileiro precisa se diferenciar da concepção norte-americana que, segundo o antropólogo Adam Kuper, propõe substituir a ideologia do “melting pot” por aquilo que é, na verdade, uma ideologia da anti-assimilação. Em suas palavras, o “fundamentalismo cultural” nega a possibilidade de construção de identidades por parte do indivíduo, impingindo-o valores e estilo de vida que são considerados “próprios” do grupo. Será que, no Brasil, a alternativa à “democracia racial” é o fechamento das fronteiras simbólicas, justificada por uma tradição ancestral? Mas toda e qualquer tradição é, de certa forma, inventada, reinventada, abandonada. Há uma maneira correta de ser “negro”, “judeu”, “muçulmano”, “branco”, “italiano”?
Não podemos naturalizar as diferenças culturais, muitas vezes associadas a características físicas. Os gestores de cultura, sejam eles públicos ou privados, devem ter em mente que estas categorias são socialmente construídas e entram na agenda a partir da pressão de grupos mais ou menos organizados. O debate sobre as cotas “raciais” nas universidades públicas é um bom exemplo da luta pelo poder simbólico, pelo poder de definição e de classificação de quem está “fora” e “dentro”. O Estado brasileiro, por sua vez, não pode ficar refém de qualquer um destes grupos ideologicamente orientados, sob pena de manter o ideal da “cidadania cultural” uma mera abstração e instrumento de retórica.

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