No
apagar das luzes de 2012, foi emitido um Aviso Circular conjunto à Ministra da
Cultura, Marta Suplicy, assinado pela Ministra Chefa da Casa Civil, Gleisi
Hoffman; pela Ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão, Miriam Belchior; e
pela Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República, Luiza Helena de Bairros, solicitando a inclusão dos
campos “cor” ou “raça”, conforme classificação utilizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e “seu preenchimento obrigatório,
mediante autodeclaração, em todos (os) registros administrativos, cadastros,
formulários e bases de dados que contenham informações pessoais, inclusive do
público externo, no âmbito desse órgão e de suas entidades vinculadas”. O
objetivo da medida é, conforme o Aviso Circular, a adoção de ações de promoção
da igualdade racial, previstas na Lei nº. 12.288 de 20 de julho de 2010, mais
conhecida como Estatuto da Igualdade Racial.
Para o Estado brasileiro, existem
raças, no plural, não sendo suficiente a existência pura e simplesmente da
humana. Mesmo Gilberto Freyre, acusado permanentemente de racista e apologista
de uma suposta “democracia racial” brasileira, já negava, no clássico do
pensamento social brasileiro Casa Grande
e Senzala, a relação entre peso craniano e capacidade intelectual (quanto
maior o peso, mais inteligente o indivíduo), comentando sarcasticamente que “o
que se sabe da estrutura entre os crânios de brancos e negros não permite
generalizações. Já houve quem observasse o fato de que alguns homens notáveis
têm sido indivíduos de crânio pequeno, e autênticos idiotas, donos de cabeças
enormes”. A relação entre características físicas e virtudes (ou sua ausência)
morais era usada nos finais do século XIX e começo do século XX por
intelectuais como Nina Rodrigues, responsável por cunhar a expressão
“criminalidade étnica”, segundo a qual é possível identificarmos objetivamente,
através de determinados traços físicos, tendências homicidas, por exemplo.
O Estado brasileiro, ao
institucionalizar o conceito de “raça” na elaboração de políticas públicas,
retrocede na luta por uma sociedade democrática, igualitária. A dissociação
entre cultura e biologia nos leva a conclusão de que a crença em raças, ou
seja, a crença de que atributos morais e intelectuais decorrem de atributos
biológicos representados simbolicamente por características físicas (cor da
pele, textura do cabelo, cor dos olhos, formato do crânio, tamanho do nariz,
etc.) é o maior mal de nosso tempo. Os métodos estatísticos da antropologia
física que informavam, ao longo do século XIX e mesmo do século XX, o estudo do
corpo humano a partir dos aspectos morfológicos mais aparentes, sucumbiu com o
desenvolvimento da genética e da biologia molecular, quando se passou a
comparar organismos a partir do conhecimento de estruturas muito mais íntimas e
fundamentais.
A restauração do conceito de raças humanas
implica na desvalorização do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei
ao dividir a sociedade em raças oficiais catalogadas pelo Estado. A cidadania
passa a comportar “graus” em função da cor da pele de cada um (ou da sua raça,
o que dá no mesmo), e as políticas públicas são pensadas com base em critérios
de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos “com a substituição da
antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de
preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas”
(SCHWARTZMAN, 2007). Não é porque a democracia racial não existe que devemos
descartá-la como um sonho a ser alcançado, mas que sejam usadas as armas
corretas, e não as do inimigo que se quer combater (no caso, o conceito de
raça).
Pergunto, fazendo coro com o
antropólogo Peter Fry, se não seria mais interessante insistir veementemente na
condição universal de Homo Sapiens Sapiens, lançando mão das recentes pesquisas
de geneticistas brasileiros, mostrando que o interior genômico dos indivíduos
não está relacionado às suas aparências.
Afinal,
racismo é racismo, e é tão perigoso quando invocado em favor dos fracos quanto
dos fortes. Afinal, os fracos de hoje podem muito bem ser os fortes de amanhã.
(FRY, 2005:199-200).
Exemplos concretos do que nos conta
Fry são incontáveis ao longo da história, como o caso do genocídio perpetrado
pela etnia hutu contra a etnia tutsi, em Ruanda, em meados da década de 1990.
Apenas para contextualizar o leitor: no início dos anos 1930, os colonizadores
belgas realizaram um censo no intuito de inserir a “etnia” nas carteiras de
identidade dos ruandeses, a partir de então, rotulados como “hutus” (85% da
população), tutsis (14%) ou twa (1%). As
carteiras de identidade tornaram virtualmente impossível que hutus se tornassem
tutsis e vice-versa, permitindo aos belgas o aperfeiçoamento de um sistema de
apartheid baseado no mito da superioridade tutsi. É importante ressaltar que,
antes da colonização belga, as duas etnias viviam mais ou menos misturadas,
compartilhando língua e cultura. Pouco depois da Segunda Guerra Mundial, o
sistema opressor foi derrubado por uma “revolução” hutu que preconizava
“democratizar” o país. Os “cartões étnicos” continuaram a exercer um papel
fundamental, agora com sinais trocados – se você fosse tutsi, sua única chance
de obter boa educação era conseguindo um cartão hutu. Logo, o “poder hutu”
transformou-se numa ditadura não menos brutal do que a de seus antecessores
belgas, perpetrando massacres (estima-se que cerca de um milhão de ruandeses
morreram na década de 1990) e transformando a vida de seus compatriotas tutsis
num inferno permanente. Conste-se que o genocídio teve, como protagonistas,
vítimas e algozes, membros de duas etnias negras, demonstrando que a estupidez
racialista devora por dentro até mesmo grupos que se querem ver, e querem que
os outros os vejam, homogêneos.
O mito da democracia racial foi
substituído pelo racialismo de Estado, revelando, no caso do Ministério da
Cultura, uma contradição entre a exaltação da diversidade cultural e a redução
desta diversidade a algumas categorias raciais que em nada explicam a
plasticidade humana e sua capacidade de produzir significados, de representar a
experiência subjetiva a partir de um manancial simbólico praticamente inesgotável.
Lembram-se daquela piada do marido que chega em casa mais cedo, encontra a
mulher com o amante no sofá da sala e, para resolver o problema da
infidelidade, resolve jogar fora o sofá? No nosso caso, o sofá é a cultura; o
amante, as categorias raciais.
Da mesma forma que os defensores do
Estatuto da Igualdade Racial denunciam o mito da democracia racial, é possível
denunciarmos o mito do homem cordial brasileiro, passivo, alheio à realidade,
acostumado à subserviência, ao “complexo de vira-latas”, pacato. Dito isto,
nada nos garante que a adoção de categorias raciais na classificação dos
cidadãos brasileiros, dentro ou fora do serviço público, não seja usada de
forma a subjugar um grupo por outro, o “forte” de hoje transformado no “fraco”
de amanhã. Quem nos garante que o Brasil não vai, em hipótese nenhuma,
“ruandizar-se” ou “sulafricanizar-se”? Ninguém.
Há uma inequívoca dissociação entre a
ciência e os interesses políticos. Por mais que se afirme que a diversidade
cultural humana não pode ser reduzida a um punhado de “raças”, a pressão dos
grupos de interesse joga na lata do lixo aquilo que, com desprezo, é chamado de
“saber acadêmico”. Como dizia Nelson Rodrigues, “se os fatos são contra mim,
pior para os fatos”. Quer dizer, pior para a antropologia, para a cultura, para
a sociedade brasileira.
Referências bibliográficas
FREYRE,
Gilberto. Casa Grande & Senzala.
Rio de Janeiro: Schimidt Editor. 1936
FRY, Peter.
Pode-se criar uma cisão racial. In: FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; MAIO, Marcos
Chor; MONTEIRO, Simone; SANTOS, Ricardo V. (org). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007
SCHWARTZMAN,
Simon. Das estatísticas de cor ao Estatuto da Raça. In: FRY, Peter; MAGGIE,
Yvonne; MAIO, Marcos Chor; MONTEIRO, Simone; SANTOS, Ricardo V. (org). Divisões perigosas: políticas raciais no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007
Também disponível em: http://www.culturaemercado.com.br/
Comentários