Logo quando entro na escola de meu filho de quatro
anos, uma frase de Monteiro Lobato colada em uma das paredes do parquinho diz
que “um país se faz com homens e livros”. Isto me conforta, porque sei que ali
a leitura é valorizada, quinzenalmente um livro diferente vai lá pra casa e nós
o lemos junto para, na segunda-feira seguinte, Miguel compartilhar com os
colegas a estória que lhe cabia. Fora o Clubinho do Livro, em que o aluno pode
retirar da biblioteca escolar o livro que quiser, contanto, é claro, que o
devolva nas mesmas condições, intacto.
O incentivo à leitura, dado na escola, é
complementar ao dado em casa. No quarto de Miguel a literatura vai dos
clássicos da Disney, Pinóquio, Dumbo,
Peter Pan, passando pelos Três
porquinhos, o próprio Monteiro Lobato e as lendas brasileiras até autores
coreanos. Faz enorme sucesso um livro chamado A aranha e a loja de balas, escrito por um autor coreano, em que
uma aranha ajuda a senhorinha dona de uma loja de doces a descobrir,
baseando-se em probabilidade estatística, que guloseimas a sequencia de
crianças que entra, uma após a outra, vai escolher. Matemática, literatura e
uma estética atraente para crianças. Não é à toa que a educação sul-coreana é
referência mundial. Não raro Miguel nos pede que leia um livro antes de dormir.
Já ouvi diversas vezes dizerem que os judeus são o
“povo do livro”, remetendo, obviamente, ao Antigo Testamento, transposição para
a escrita de estórias, leis, valores. Verdade ou não, o culto à cultura ou o
culto ao saber passou a fazer parte da identidade étnica, sobretudo em momentos
históricos como a formação de uma classe média intelectualizada no Brasil, em
que o saber acadêmico tornou-se fundamental para a entrada no mercado de
trabalho. Outros explicam a valorização da leitura e da literatura por ser,
eminentemente, algo imaterial, que pode ser carregado pelo portador
independente de um suporte físico, como em guerras e perseguições, comum na
história judaica. Pouco importa se esta característica é “real” ou não, mito ou
não, porque, queira-se ou não, esta tradição foi “inventada” e passou a ser
reproduzida através das gerações. Estou fazendo minha parte nesta engrenagem.
Mas, para além do fortalecimento de fronteiras de
identidade, a leitura é um valor em si. Permite ao sujeito construir-se
autonomamente, elaborar sua visão de mundo a partir de múltiplos pontos de
vista, permite-o dar sentido à vida, conhecer seu mundo simbolicamente através
de estórias e histórias. O sujeito passa a ter opinião, a pensar por si e não
através da boca dos outros, a compreender o mundo que o cerca e atuar para
modificá-lo, caso julgue necessário. A relação entre livro, leitura,
conhecimento é inextricável. Conhecimento do mundo, da vida, não apenas o
conhecimento que salta dos livros acadêmicos, embora estes tenham importância
insubstituível também. Quem lê amplia seus horizontes, multiplica os espaços
por onde pode transitar porque o “estranho” se transforma em “familiar”.
Descobrem-se novas aptidões, novos gostos, descartam-se outros. Uma sociedade sem
leitores é uma sociedade sem futuro, porque não sabe pensar por si, porque não
tem cara, não tem identidade, não sabe quem é, não se reconhece no espelho.
Ler dá trabalho, é uma aprendizagem. Mais trabalho
ainda é a compreensão daquilo que se lê. É preciso, portanto, afastar de uma
vez por todas a Síndrome de Macunaíma que perpassa a sociedade brasileira, a
começar dos altos escalões governamentais. Numa entrevista concedida à revista
Piauí, em 2008, e publicada na edição de janeiro de 2009, o ex-presidente Lula
declarou que não achava ser necessário ler, uma vez que conversava com muita
gente que o fazia. Ou seja, o ex-presidente considerava suficiente ler pelos
olhos de terceiros. Passava mesmo a impressão de que tinha orgulho de nunca ter
pegado num livro e o lido de cabo a rabo. À época, o sociólogo Alberto Carlos
Almeida explicou didaticamente como o comportamento humano é aprendido, dentre
eles, o hábito de ler:
Aprendi com colegas
antropólogos que a socialização de cada um de nós molda até os pequenos
detalhes de nosso comportamento. Sugiro ao leitor que considere esse
ensinamento ao ver alguém que nunca pegou em um livro manuseá-lo pela primeira
vez. Simplesmente a pessoa não sabe o que fazer, não sabe por onde começar,
como lidar com as páginas etc. (...)
Recentemente, num voo
doméstico, vi uma pessoa forçando a porta da cabine do piloto pensando que era
o banheiro. Como no exemplo do livro, essa pessoa provavelmente nunca havia
voado antes. Uma vez, fui comer pamonha com um alemão que recebi no Brasil. Ao
pegar a pamonha ele a mordeu imediatamente, sem saber que antes era necessário
retirar a palha do milho. Aquele que sabe onde fica o banheiro do avião e sabe
como comer a pamonha tende a rir das pessoas que forçam a porta do piloto ou
mordem a palha do milho. Aqueles que costumam ler vários livros por ano, ler
jornais e revistas, não vão rir da declaração de Lula, mas chorar.
A desqualificação da leitura e, de forma mais
ampla, do saber, é parcialmente reproduzida em setores da administração pública.
Em primeiro lugar, porque se estabelece equivocadamente uma separação
artificial entre gestão pública e saber acadêmico, este último rotulado de
“arrogante” e “alheio à realidade”. Parte-se do pressuposto de que gestão é
ação, prática, execução, e saber é teoria, contemplação. Falta a compreensão
basilar de que a gestão envolve muitas etapas, dentre elas, a sua própria
avaliação (reflexão!) com respeito à eficiência das ações propostas para o
alcance das diretrizes estabelecidas lá no início do processo, na fase de
elaboração da política institucional. O gestor público não é, ou melhor, não
deveria ser, um autômato.
Em segundo lugar, não é unânime a
institucionalização de programas de capacitação do servidor com vistas à sua
constante atualização nos temas específicos de sua área de atuação, de forma a
tornar a administração pública mais eficiente. É fundamental o estabelecimento
de critérios objetivos para a seleção de servidores que pleiteiam o custeio de
cursos de pós-graduação, de especialização ou de participação em congressos e
seminários no país ou no exterior, tanto como ouvinte quanto como apresentador
de trabalhos. A decisão institucional deve levar em conta a qualidade do
retorno do investimento, e não submeter-se à discricionariedade subjetiva dos
dirigentes de plantão. Falamos, portanto, de uma gestão profissional, moderna,
baseada nos princípios da eficiência, transparência, impessoalidade e
imparcialidade, oposta a uma visão anacrônica, porque autoritária e
patrimonialista, da administração pública.
O que eu faço na minha casa diz respeito apenas a
mim e a minha família. Se, em comum acordo com minha esposa, estabelecermos
como parâmetro de boa educação para nosso filho a programação dominical da TV
aberta brasileira, é direito nosso, e azar dele. No espaço público, por outro
lado, as decisões devem ser tomadas a partir do “interesse coletivo”, por mais
difícil que seja defini-lo. Na administração pública, a mediocrização
intelectual em nada ajuda na gestão das políticas institucionais. É um tiro no
pé.
Também disponível em : http://www.culturaemercado.com.br
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