A favor do arco-íris

A Antropologia é uma ciência fascinante. Ela parte de um pressuposto muito simples, o de que a interpretação da cultura exige do intérprete a capacidade de relativizar pré-conceitos, de colocar entre parênteses julgamentos de valor quanto à qualidade ou relevância simbólica das manifestações em análise. Estranhar o familiar, exotizá-lo; familiarizar o exótico, torná-lo próximo: eis o desafio. Tanto maior porque os pré-conceitos e julgamentos são, eles mesmos, construções sociais, são cultura, e despirmo-nos de quem somos não é algo fácil, como bem comprovou o diário de campo de Bronislaw Malinowski.

A Antropologia moderna, nos idos do século XIX, criou uma metodologia própria para que o exótico fosse desbravado e compreendido, a chamada “observação participante”. O antropólogo embrenhava-se no grupo a ser estudado e transformava-se, na medida do possível, em nativo. Comia da mesma comida, bebida da mesma bebida, participava dos rituais como um membro nato. Pensava-se que só assim, participando ativamente da vida social daquele grupo, seria possível compreendê-lo, de dentro. O estranho não apenas aproximava-se do familiar, mas acabava, supunha-se, confundindo-se com ele. 

Hoje, os antropólogos sabem muito bem que não é possível uma antropologia estritamente objetiva, e que isto não é tão relevante assim para a pesquisa científica. Como muito bem resumiu Clifford Geertz, autor de A Interpretação das Culturas, não é pelo fato de não podermos realizar uma cirurgia em ambiente inteiramente asséptico que devemos realizá-la num esgoto, ou seja, não se deve jogar a água suja junto com o bebê. 

Tal constatação leva a outra: qualquer indivíduo tem a capacidade de analisar manifestações culturais, sejam elas nativas ou estrangeiras, contanto que cumpram algumas exigências metodológicas própria da ciência antropológica. Assim como poderíamos imputar ao estrangeiro a incapacidade de compreender o “outro”, poderíamos imputar ao nativo a incapacidade de livrar-se das amarras culturais que o impedem de ter uma visão minimamente afastada. Resumindo: estar “dentro” ou “fora” deixa de ser critério de legitimidade da análise.

A capacidade interpretativa, para além do fato objetivo, independe, portanto, da identidade cultural daquele que pretende interpretar. É por isso que inúmeros estudos sobre as chamadas religiões afro-brasileiras são desenvolvidos por não-iniciados. Muitos destes estudos premiados são legitimados, ainda que não fosse preciso, por nativos. Cada macaco no seu galho? Não mais. Ademais, a visão nativa de que apenas os “de dentro” são capacidades de “entender” o que é ser nativo cai no mesmo problema do pré-julgamento, por considerar que o grupo é uniforme, homogêneo, sem opiniões dissonantes. 

O mais interessante, na minha época de faculdade, era observar professores de antropologia vestindo roupa branca na sexta-feira em homenagem a Oxalá, o deus criador do homem e da cultura material para o Candomblé. Se, a princípio, associa-se a religião africana com adeptos de cor escura, nada mais estranho, porque incomum, do que olhar indivíduos de pele clarinha passeando com vestidos brancos, calças brancas, camisas e camisetas brancas, observadores desinteressados convertidos em observados, “nativizados”. Moral da estória: não só a integridade intelectual e o rigor científico autorizam o observador distante a interpretar culturas “exóticas” como este mesmo observador distante pode converter-se num exótico. Eis que os ensinamentos da antropologia moderna, do relativismo, do perspectivismo, do interacionismo simbólico e muitos outros “ismos” são colocados em xeque pelo Ministério da Cultura, ironicamente.

Em matéria publicada no site do Ministério da Cultura no último dia 04 de outubro, sabemos que a ministra Marta Suplicy vai lançar editais com a “temática afrodescendente” condicionando a produção e criação a produtores e criadores negros. Com isso, a ministra quer “estabelecer novo paradigma em que a cultura, em todas as linguagens apoiadas pelo Ministério da Cultura (MinC) tenha protagonismo dos negros, de fato”. Determinou-se que os presidentes da Fundação Nacional de Artes, da Fundação Biblioteca Nacional e a Secretária do Audiovisual apresentem editais que cumpram com a temática a serem lançados no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Ainda segundo a ministra, é essencial ao Brasil valorizar a cultura negra, “apoiar e incentivar a produção da cultura negra por quem é negro” (grifo meu). Em reportagem do caderno Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, mais uma frase de Marta: “É para negros serem prestigiados na criação, e não apenas na temática. É para premiar o criador negro, seja como ator, seja como diretor ou como dançarino”.

O argumento de que a cultura negra não tem o negro como protagonista é uma tentativa de racializar as políticas públicas de cultura, acusando-se gestores, comissões de seleção e instituições de má-fé (eufemismo de “racismo”), por omissão ou conivência (para ler o artigo “Tentativas de racialização das políticas culturais”, clique aqui). A ausência de negros em comissões de seleção, por exemplo, seria um exemplo da discriminação e do “brancocentrismo” dos editais públicos lançados pelo Ministério da Cultura. Como se o fato do julgador ter a pele escura o impedisse de avaliar corretamente, por exemplo, projetos “de branco” mais qualificados que projetos “de negro”. Como se o fato do julgador ter a pele clara o levasse, inexoravelmente, a selecionar um projeto “de branco”, por afinidade fenotípica.  

Tomar como critério de seleção de projetos a cor ou “raça” do proponente é um equívoco, por desconsiderar a qualidade de projetos elaborados por “não-negros” tratando de temas “negros”. O olhar sobre determinado tema independe de quem olha, se de “dentro” ou de “fora” do objeto de analise, contando muito mais a sensibilidade estética do proponente.
A título de contribuição, gostaria de sugerir algumas questões a serem discutidas:

1.O quê o Ministério da Cultura entende por “cultura”?
2.O que o Ministério da Cultura entende por “temática afrodescendente”?
3.Quem o Ministério da Cultura considera apto a desenvolver a “temática afrodescendente”?
4.Há uma perspectiva negra de ver o mundo? Como a definimos? Quem a define?
5.Há uma perspectiva branca de ver o mundo? Como a definimos? Quem a define?
6.Uma vez lançado o edital, como identificar a “negritude” do proponente?
7.Qual o papel da meritocracia na análise dos projetos?
8.O que fazer com a produção artística e intelectual “branca” sobre “temáticas afrodescendentes”? 
9.O estabelecimento de critérios de análise é arbitrário, assim, por que não deslocar o foco da “raça” para a qualidade do projeto?
10.Há uma produção negra e uma produção branca sobre os mesmos temas ou cada “raça” tem um tipo de produção/temática próprio? (Opinião pessoal: existe tanto uma produção “branca” quanto a idéia de “dinheiro judeu”, segundo os anti-semitas)
11.Na medida em que os gestores públicos destes editais não foram consultados a seu respeito, que papel se pode atribuir a eles na elaboração das políticas públicas de cultura na atual estrutura do MinC ?

Dentre as vozes que se levantaram contra esta proposta de editais está a da professora de antropologia da UFRJ, Yvonne Maggie, que, muito corretamente, pergunta: “Teremos agora um arte produzida por negros e outra por brancos? Ou a arte busca a universalidade?”. Reduzir a humanidade a duas cores acaba por questionar a própria idéia de diversidade cultural, utilizando-se critérios que em nada contribuem para a compreensão da plasticidade e da beleza, material e simbólica, da produção cultural humana. Resta-nos invocar aquela famosa frase de Jesus Cristo, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. E viva o arco-íris!

Referências bibliográficas
1.http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1164941-minc-anuncia-edital-para-negros-e-gera-debate-no-meio-cultural-leia-repercussao.shtml
2.http://www.cultura.gov.br/site/2012/10/04/cultura-afrodescendente-2/

Também disponível em : http://www.culturaemercado.com.br

Comentários