Numa determinada passagem do romance Sombras
da romãzeira, do escritor paquistanês Tariq Ali, Omar Bin Abdala conversa com
sua mulher, Zubaida, a respeito das opções que viam pela frente, a conversão
após a Reconquista empreendida pelos reis católicos Fernando e Isabel ou a
morte. Zubaida admite que não é uma pessoa religiosa, embora mantenha as
aparências jejuando durante o mês do Ramadã. No entanto, a simples ideia de
converter-se ao catolicismo causa-lhe repulsa. Diz ela:
Algo dentro de mim se revolta contra a
conversão. Começo a me sentir estranha, até violenta, quando penso nisso. Preferia
morrer do que me converter e fingir que estou comendo carne humana e bebendo
sangue humano. O canibalismo da liturgia deles me repulsa, me atinge
profundamente. Você lembra o choque que os sarracenos tiveram quando os
cruzados começaram a assar os prisioneiros vivos e comê-los? Fico doente só de
pensar, mas faz parte da fé deles.
Apesar da repulsa, Zubaida, em momento algum,
afirma a necessidade de matar os "canibais" seguidores de Jesus
Cristo, não obstante a situação crescentemente desesperadora que os muçulmanos
viviam na Espanha nos finais do século XV e início do XVI. Mesmo
inconscientemente, a personagem defende, em sua repulsa, o direito à existência
do "outro", do diverso. Como bem nos ensina Clifford Geertz, não é
que tenhamos que amar uns aos outros, mas nos conhecermos e viver com este
conhecimento por mais repugnante que o modo de vida alheio seja. A diversidade
não implica em aceitação incondicional dos modos de vida do "outro", mas
na compreensão que ele tem suas razões para se comportar de tal ou qual maneira,
de acreditar nisto ou naquilo, ainda que eu não considere a melhor maneira de
se comportar ou de pensar.
Zubaida não compreende o porquê do "canibalismo"
católico, transmutado na hóstia e no vinho. Sua visão de mundo é etnocêntrica, acredita
que suas crenças e valores estão no centro do mundo. O etnocentrismo não é algo
que nasce com o ser humano, é construído ao longo dos anos a partir da
transmissão de certos valores que passamos a considerar corretos em oposição a
todos os outros que ficam para além das fronteiras simbólicas do grupo. Zubaida
não tem a obrigação de fazer autocrítica de suas convicções, não precisa
colocar em perspectiva suas verdades.
Este papel de crítico e desafiador das
verdades absolutas cabe ao antropólogo, por exemplo, que é treinado a observar
e relativizar o familiar e aproximar o estranho. O mesmo podemos dizer de
humoristas e cartunistas, como os chacinados em Paris. Charges e cartuns como
os do semanário Charlie Hebdo só são possíveis em sociedades caracterizadas
pela polissemia dos discursos da identidade, pela existência de um campo aberto
onde acontece a luta pelo direito de existir, pelo reconhecimento da existência
enquanto grupo, incluindo-se aí a utilização de recursos pouco nobres, digamos
assim, como estigmas, preconceitos e ridicularizações.
Os assassinos de Paris não compreenderam que
não há mais espaço para tabus quando o assunto é identidade, que o mundo não
pode mais ser dividido em preto e branco, mocinhos e bandidos, fiéis e infiéis,
que há milhares de matizes entre as duas pontas e que ninguém é obrigado a
aceitar uma única e sagrada forma de levar a vida. E que todos nós temos de
estar preparados para enfrentar críticas sobre nossas escolhas. De bom ou mau
gosto, pouco importa.
O massacre parisiense é uma prova de como o
mundo está, mais do que perigoso, chato, monótono, refém do politicamente
correto. Piadas que envolvam homossexuais, negros, judeus, mulheres ou qualquer
outro grupo social que tenha conseguido afirmar sua identidade nos últimos anos
(o que deve ser louvado, festejado, é bom que fique claro) foram praticamente
banidas do espaço público. Quando não, o autor da "blasfêmia" é
acusado de racista, misógino, antissemita ou infiel. Hipocritamente, as piadas
ficam restritas ao ambiente interno do grupo, protegido pelos muros da
comunidade. Judeu ri de piadas de judeu contadas por judeus (ouço várias), negro
ri de piadas de negros contadas por negros, e assim por diante. Nem os feios
escapam da patrulha ideológica, como reclamou recentemente o humorista Renato
Aragão.
Outro dia, ouvi um relato que resume bem o
clima de autocensura que vivemos. Uma amiga conversava com um colega de
trabalho quando, a certa altura, ao criticar outros funcionários por não
realizarem o trabalho satisfatoriamente, disse que "neguinho não sabe
trabalhar". Ato contínuo, foi tomada de um sentimento de vergonha, constrangimento
e culpa por ter, possivelmente, ferido a autoestima do interlocutor, de pele
escura. Esta amiga, obviamente, não quis ofender ou ridicularizar pessoas de
pele escura, utilizando pura e simplesmente uma expressão regional mais do que
comum entre cariocas, "neguinho", cujos sinônimos poderiam ser "fulano",
ou "sicrano", "pessoal".
A análise deveria se concentrar na semântica
das palavras, sua origem e a forma como são socialmente compreendidas no
estabelecimento de relações entre indivíduos e grupos. O significado que as
palavras carregam não paira acima da sociedade. É compreensível que o esforço
para banir ou marginalizar determinadas palavras e expressões aconteça em
contextos nos quais o estigma social está arraigado e relacionado
inextricavelmente ao símbolo do estigma, falado ou desenhado. É assim que
compreendemos a exaltação de expressões que visam inculcar um sentido positivo
àqueles outrora discriminados, como "Black is beautiful" e "preto
é cor, negro é raça" e a repreensão moral, nos Estados Unidos, a todos
aqueles que continuem a usar a palavra "nigger" (quando querem se
referir ao termo, dizem "the n word"), algo como "crioulo" no
Brasil. No entanto, a luta contra o estigma social não pode se resumir, ou
melhor, não deveria partir da mudança de palavras no trato social, mas da
mudança no significado que as palavras adquirem na sociedade. Caso contrário, estamos
diante daquela situação em que o marido traído decide retirar o sofá em que a
mulher consumou a traição, em vez de se divorciar. O problema não é o sofá nem
as palavras.
A democracia garante a liberdade de
expressão, gostemos ou não daquilo que é dito. Não gostar ou não concordar com
o que é dito também não me dá o direito de prender ou matar quem me desagrada. Em
2013, um tribunal da Turquia condenou a dez meses de prisão o pianista mais
famoso do país sob a acusação de blasfêmia contra o Islã. Ele havia comentado, numa
rede social, a oração de 22 segundos de um muezzin (sacerdote) numa das
mesquitas do país perguntando "qual era a pressa? Uma amante? Uma
bebedeira?". Posteriormente, a condenação foi anulada sob a alegação de "vícios
de origem". Pode-se discutir o bom ou mau gosto das declarações do
pianista, mas o argumento utilizado pela promotoria é esquizofrênico quando
atestamos o fato de a Turquia ser, ao menos em teoria, uma república secular. A
blasfêmia só pode ser considerada como tal se interpretamos o conteúdo a partir
de um discurso religioso, o que vai de encontro à laicidade do Estado.
A liberdade de expressão é um valor
fundamental de sociedades democráticas e não pode ser colocada em xeque em
circunstância alguma, por mais que o feitiço vire contra o feiticeiro. Afinal
de contas, estou defendendo o direito dos outros me ofenderem. Faz parte do
jogo. Como bem disse Roberto DaMatta, "liberal, aceito a liberdade de
ofender com palavras, não com tiros". A resposta a quem ameaça a
democracia é dar mais democracia, promover o debate de ideias opostas, e não
censurá-las. Um ateu que se sinta insultado por afirmações de religiosos a
respeito da criação do universo, negando a teoria evolucionista, não tem o
direito de encostar o dedo que seja naquele que o insulta, o reverso sendo
verdadeiro, quer dizer, um religioso que se sinta ofendido por um ateu que
afirme ser o homem descendente de macacos não pode condená-lo ao apedrejamento
ou à cadeira elétrica.
Quem se sentir ofendido, insultado, tem o
direito de procurar a justiça. Dos homens, de preferência.
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