Assassinando o português

Uma das fases mais interessantes e emocionantes na primeira infância é o desenvolvimento da fala da criança. É um momento marcante quando, sentada a família no sofá da sala, a pequena criaturinha solta um som parecido com a palavra “bola”, “mamãe” ou “papai”. É como se, a partir desse momento, estivéssemos diante de um verdadeiro ser humano, capaz de expressar pensamentos e sentimentos através da linguagem, até ali praticamente dependente para absolutamente tudo, exigindo dos pais e demais parentes a capacidade de adivinhar o que se passa naquela cabecinha, se está com fome, sede, se quer fazer cocô ou xixi, se está com dor em algum lugar, se quer colo, se... O deslumbramento com este rito de passagem rivaliza com aquele do engatinhar e, suprassumo, do ficar em pé no bercinho para, em seguida, sair andando pela casa, ninguém mais segura e tome grade separando cozinha e sala de estar e proteção nas partes pontiagudas dos móveis.

Com o passar dos anos, a criança junta palavras soltas e forma frases, aproximando-se cada vez mais de um interlocutor capaz de manter diálogo, concordar e discordar de nossas opiniões, e a coisa só piora. Com sete anos, achamos que Miguel tem opinião de sobra, exige demais, diálogo demais, às vezes um autoritarismo amoroso (afinal, nós pais sabemos o que é melhor para os filhos!) vem a calhar. É lindo observá-lo tomar as rédeas do mundo apropriando-se das coisas e dos lugares, dando-lhes sentido através das palavras e da escrita, inserindo-se no mundo social, compartilhando gostos, sentimentos e valores com os colegas da escola, construindo seu estar no mundo a partir de múltiplas referências e, consequentemente, a partir de múltiplas identidades. Ele é o típico carioca na jinga e nas gírias, é “mermão” (meu irmão) pra cá, “sinistro” pra lá; “caraca” (caramba) pra cá, “véio” (velho) pra lá, “fala sério” pra cá, “tipo assim” pra lá. Gírias e expressões coloquiais são parte deste ser carioca, e isto me dá um prazer imenso porque, antes de ser brasileiro, sou carioca, antes de torcer para a seleção brasileira, sofro pelo “framengo” (Flamengo).

Periodicamente, participamos de reuniões coletivas com a professora, momento em que trocamos impressões sobre o desenvolvimento pedagógico da turma tanto com relação à aprendizagem do currículo estabelecido pelo Ministério da Educação quanto ao desenvolvimento da capacidade de relacionar-se com o outro, habilidades cognitivas necessárias para o convívio social, internalização de regras básicas, ética. Na fase em que estamos, sete anos, além do desafio de passar da letra de forma para a letra cursiva, processo que considero difícil (a minha é horrorosa, pior do que a de médico), há o processo de aprendizagem da norma cultura da escrita segundo o novo acordo ortográfico firmado entre os países da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A orientação é que não corrijamos o dever de casa se observamos que as palavras não estão sendo corretamente escritas, por exemplo, “ss” em vez do “ç”, papel este que cabe à professora na discussão em sala de aula, importando mais no momento do exercício em casa a correta apreensão do som a ser transposto para o papel, o fonema. Alguns pais não concordam com este posicionamento porque acreditam que a não correção no momento do erro ortográfico estimula a internalização do erro por parte da criança. Não entendem que a aprendizagem é um processo, que tudo tem sua fase, é uma evolução. Neste tópico, Miguel não me preocupa.

Concordo que a escola deva promover o uso da língua culta. Quando o Ministério da Educação lançou o livro Por uma Vida Melhor da coleção “Viver, aprender”, voltado para a educação de jovens e adultos, houve grande celeuma entre educadores, pedagogos, escritores, jornalistas e público em geral, sobretudo com o excerto do capítulo 1 em que se “assassina”, conforme muitos dos críticos da obra, a língua portuguesa ao incentivar o uso da expressão “nós pega o peixe” como correto. Parece que não é bem isso que os autores quiseram dizer, que o importante é a adequação do usuário da língua portuguesa ao contexto em que está inserido. Tratar-se-ia, portanto, de simples adequação linguística, o que também concordo porque promove o respeito à diversidade cultural e às inúmeras identidades regionais e locais que usam a língua como meio de expressão.

No entanto, no estilo “policial bonzinho, policial malvado”, fico com a posição do pedagogo Hamilton Werneck que, à época da polêmica em torno do livro do MEC, escreveu:

"A norma culta da língua, de fato, obriga o professor a dizer de modo coerente com a gramática, embora compreenda uma série de interferências que podem estar relacionadas na fala de regiões de fronteira, nas cidades onde estão reunidos muitos colonos vindos de países diferentes. No Rio Grande do Sul, por exemplo, numa distância de 20 quilômetros, entre Cerro Largo e Guarani das Missões, um professor que trabalhe nas duas cidades conviverá com a cultura alemã em Cerro e com a cultura polonesa em Guarani. Isso exigirá dele uma adaptação rápida, por vezes no mesmo dia, abordando estratégias diferentes para ensinar e corrigir distorções, cuja origem é bem conhecida. Cabe a esse professor e a todos quantos lecionarem pelo Brasil entender as diferenças, oxigenar a mente para lidar com as inúmeras variedades, compreender os erros e corrigi-los, sem humilhar os estudantes. O cuidado ao lidar com essas pessoas que têm saberes e produzem cultura, embora se expressem de modo pouco familiarizado com a gramática de nossa língua, deve ser estimulado. Não há justificativa para transformar a linguagem popular em chacota e risos porque seria um desrespeito às pessoas que não tiveram oportunidades para aprender bem. Porém, quando admito que se deve conviver com o erro sem corrigi-lo, admito também que estou privando esse carente linguístico de aprender o que é correto e de ter oportunidade de melhorar de vida."

Respeitar a identidade local é uma coisa, ignorar o baixo nível escolar dos indivíduos no manejo da língua portuguesa é diferente, é ser permissivo com o erro. É demagogia barata e má-fé acusar de elitismo quem defende o uso da norma culta, por exemplo, numa defesa de tese de doutorado porque quem defende a norma cultura neste contexto específico sabe muito bem, espero eu, que numa partida de futebol, quando o juiz faz uma lambança, o grito a ele dirigido não será “seu filho de sua progenitora!”. Em Roma, como os romanos. Se assim não fosse, pra quê dicionários e acordos ortográficos?

E quem deveria dar exemplo é fonte inesgotável de vergonha alheia.  No Conselho de Ética que analisou o pedido de cassação do mandato do deputado Eduardo Cunha, ouvi deputado tascando um “menas” em lugar do “menos” e “seje” em lugar do “seja”. Tia Eron, a obscura deputada federal alçada ao estrelato instantâneo por ser voto decisivo neste mesmo processo de cassação de mandato, representante fiel (com trocadilho, por favor) da Igreja Universal do Reino do Deus, chamada de tia por seu trabalho “pastoral” com o rebanho infantil e que, pasmem, também é professora, insistiu no neologismo “rezistro” (ou seria “resistro”?), em vez do pedante “registro” ao proferir seu tão esperado voto. Isto apesar de citar, imagino que com a ajuda dos universitários, Umberto Eco, Platão e Darcy Ribeiro, este último revirando-se no túmulo por estar na boca de quem tripudia do vernáculo nacional.

Não à complacência com a mediocridade intelectual. 


Para ler o texto de Hamilton Werneck, acesse:

http://linguaportuguesa.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/31/o-professor-a-linguagem-e-o-aluno-ha-um-225118-1.asp




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