Nas férias de verão de 1995 passei cerca de um mês em
Israel num programa organizado por um dos movimentos juvenis judaicos e que
tinha, dentre seus objetivos, fortalecer os vínculos de identidade dos judeus
diaspóricos com a terra-mãe, como acreditam muitos. Mas as linhas que seguem
não tratam da eterna questão da construção da identidade judaica, do quebra-pau
entre sionistas, não sionistas e antissionistas, este assunto sério deve ser
tratado em outro momento, numa mesa de bar por exemplo.
À parte a fissura no joelho, ganha numa malfadada
partida de basquete no final de semana que passei com primos israelenses, e que
me tiraram, por sorte, da excursão que o pessoal fez a um acampamento militar,
onde tiveram a oportunidade de atirar com pistolas, não obrigado, o que lembro
bem é o contato que tivemos com os hermanos argentinos. Eles, sempre cantando
em ritmo de torcida organizada de futebol, nós quietos apenas levantando os
quatro dedos da mão em alusão ao tetracampeonato ganho nos pênaltis naquela
autêntica pelada contra a Itália meses antes. Provocações de um lado e de outro,
hormônios em ebulição naquele período de dezesseis, dezessete anos. Acho que o
Pelé e a palavra “negros” entravam num dos refrães entoados pela “hinchada”,
prefiro não acreditar que se tratava de ofensas racistas; nós não deixávamos
barato, revidávamos baixando o nível com a singela rima “Ô, ô, ô, Maradona
cheirador” e, cúmulo dos cúmulos, “ô, ô, ô, la AMIA (Asociación Mutual Israelita
Argentina) explotó (explodiu)” o que, hoje, me dá muita vergonha porque a
rivalidade no futebol não podia descambar pra ridicularização da tragédia sofrida
pela comunidade judaica de Buenos Aires, atingida por um ato terrorista até
hoje envolto em névoas mais do que suspeitas. Naquela hora, pra gente, eram
judeus, mas, acima de tudo, argentinos, e argentinos têm de sofrer.
Tudo era, a meu ver, parte da nossa mal curada dor de
cotovelo por causa do gol do Caniggia na Copa de 1990 depois de passe genial do
“cheirador”, das partidas perdidas pra “eles” nos campos de várzea onde
estávamos hospedados em Jerusalém, das meninas brasileiras que queríamos pegar
e que quem pegava eram eles, das meninas argentinas que queríamos pegar e que
quem pegava eram eles mesmo com aqueles cabelões característicos dos argentinos
da década de 1990 (quem não se lembra do técnico da seleção argentina, Daniel
Passarela, ameaçando de corte aqueles jogadores que se recusassem a cortar a
juba?). Daquilo que, erradamente, consideramos arrogância quando, na verdade, é
autoestima e altivez, quando as equipes argentinas de futebol vêm jogar no
Brasil e “partem pra cima” sem medo de ser feliz, quando não se intimidam com
pressão de torcida, quando, numa bela manhã de domingo, nós ali no Aterro do
Flamengo brincando com os filhos e tomando uma cerveja com os pais dos amigos
dos filhos, ouvimos um buzinaço e percebemos que são as “invasões bárbaras” de
carros argentinos que, por despeito, cara-de-pau, sem-vergonhice, ora vejam, resolvem
assistir a final da Copa do Mundo na nossa cidade num dos telões da praia de
Copacabana. Tem que ter “aquilo roxo” pra rodar milhares de quilômetros,
entrando em território inimigo justamente no momento de celebração daquilo que
os brasileiros consideram o âmago de sua identidade, o futebol, e que, feridos,
não conseguem esquecer a sova de 7 a 1 sofrida para a Alemanha. Gol da
Alemanha.
Quem tem complexo de vira-latas somos nós, quem
implica somos nós, quem tem inveja somos nós, quem precisa denegrir o “outro”
para se sentir bem somos nós, quem precisa dizer que a única vez em que foi
assaltado foi em Paris ou Nova Iorque somos nós. “Eles” nos admiram. É só
sintonizar a rádio de notícias de maior audiência da Argentina para ouvir, vira
e mexe, na abertura dos programas uma bossa nova, um Toquinho e Vinicius,
Toquinho que vai se apresentar com Maria Creuza dia desses em Buenos Aires. É
só entrar num táxi e o taxista, quando sabe de onde viemos, cantar loas ao
Brasil, tentar falar algumas palavras em português, fantasiar sobre a maravilha
que é morar no Rio de Janeiro, praia o ano todo, belas mulheres, aquela
baboseira de sempre. É só se embrenhar no meio da torcida do Velez Sarsfield
(que Boca, que nada) num jogo qualquer do campeonato local para ouvir versões
argentinizadas de “mamãe eu quero” e “ilariê”, a Xuxa fez enorme sucesso por lá
na década de 1990, sim, nem tudo que exportamos presta. Interessantíssima a imagem que um argentino me
passou quando traçava uma bela pizza na “La Monumental de Nuñez”, imagem esta
que depõe muito mais contra do que a favor dos brasileiros, achando meu
interlocutor que o brasileiro se contenta com o peso (no nosso caso, real) que
tem no bolso, o argentino nunca estando satisfeito, sempre reclamando. Não
seriam os brasileiros acomodados, penso eu? A perspectiva, sempre ela, maldita
herança antropológica.
Pausa para a teoria.
No clássico O homem marginal, Everett C. Stonequist
afirma que, quando os muros do gueto medieval foram postos abaixo e ao judeu
foi permitido participar da vida cultural dos povos no meio dos quais vivia,
apareceu um novo tipo de personalidade, um híbrido cultural. Era um homem que
participava intimamente da vida e das tradições culturais de dois povos
distintos, não querendo romper completamente com o seu passado e tradições e
não sendo aceito inteiramente pela sociedade que abria suas portas. Era um
homem à margem de duas sociedades e duas culturas, que nunca se interpenetravam
e se fundiam. O judeu emancipado é, nesta visão, o primeiro cosmopolita e
cidadão do mundo, o “homem marginal” por excelência. É um tipo de
personalidade, mais do que um estado transitório tanto dos imigrantes quanto de
seus descendentes. Uma alternativa às interpretações dadas por Stonequist ao
fenômeno da marginalidade em indivíduos portadores de tradições distintas, pode
ser a própria noção de “cosmopolitismo”. Em tempos de “pós-nacionalismo”, ser
cosmopolita e “estrangeiro de tudo” é um trunfo social. Os judeus não mais
detêm o monopólio sobre os instintos de viagem ou de cosmopolitismo, isso, se
eles já o detiveram algum dia. A sociedade moderna transforma hóspedes em
anfitriões e vice-versa. A reciprocidade e periodicidade de papéis de
anfitriões e hóspedes conduzem a um estado no qual nenhuma das partes está
absolutamente “em casa” em lugar nenhum. O caráter “cigano” da “judaicidade”
deixa de ser uma qualidade negativa. O cosmopolitismo é parte da condição
moderna, daí não fazer mais sentido falarmos num “judeu errante” se todos os
indivíduos modernos são, em graus diversos, errantes. A “judaicidade” deixa de
ser um ethos específico de um grupo específico. Todos nós somos cosmopolitas,
cidadãos do mundo.
Coincidência ou não, minha judaicidade torna, hoje, as
coisas fáceis. Sou um cidadão do mundo, um flaneur. Nasci no Rio de Janeiro,
mas meu coração é bonaerense. Lembro-me de minha avó materna que dizia não ser
polonesa, e sim judia da Polônia. Ela nunca se identificou com o país de
nascimento, pudera também com o antissemitismo imperando impune. Eu não.
Identifico-me com o local de nascimento (cada vez menos, é verdade) embora não
limite minhas fronteiras à geografia. Um conhecido diz que precisa, ao menos
uma vez por ano, renovar as energias em Buenos Aires, compartilho deste
sentimento. Por isso, escrevo a palavra “eles” entre aspas, porque, para mim,
me sinto parte deste “outro”, eu sou “eles” e “nós”.
Sempre me emociono quando o avião se aproxima do
Aeroparque, uma espécie de Santos Dumont portenho, ávido por aproveitar cada
minuto e cada centímetro de uma cidade cada vez mais linda e acolhedora,
inundada de parques e prédios cuja arquitetura é inigualável, uma verdadeira
Paris dos trópicos. Calle Florida é para os pobres de espírito. Da última vez,
ganhei bolhas nos dois pés de tanto andar, flanando sem saber muito bem para
onde ir. Recoleta? Não. Sorvi a cidade, hospedado numa ruazinha de Palermo onde
aluguei um estúdio, visitei a bodeguita na mesma rua onde sempre compramos
vinhos, desbravei Villa Crespo, Nuñez, Belgrano, Chacarita, Caballito, fiz a
maratona das pizzarias, El Cuartito seguindo em primeiro lugar com menções
honrosas para a Kentucky e as de sempre, Guerrin e Las Cuartetas, a milanesa e
o “ojo de bife”, tomei café-da-manhã num barzinho de onde pendiam do teto grandes
pedaços de presunto cru, lambuzando-me com medialunas (croissants, vá lá,
perdão o sacrilégio) inigualáveis e um “jarrito” de café com leite, fui
obrigado a entrar numa fábrica caseira de churros perdida numa rua transversal quando
seguia rumo ao centro da cidade.
Para curtir Buenos Aires, deve-se olhar para frente,
para os lados e, sobretudo, para cima, para o alto dos prédios. Prestar atenção
nos detalhes, em frases e expressões escritas nas paredes, tipo “bisexuales
feministas” (o que seria isso?), andar para cima e para baixo com o “subte”
(metrô) e com os ônibus que cortam a cidade em faixas exclusivas tipo BRT. Simplesmente
estar lá, sem pensar em nada mais, ouvir aquele sotaque inconfundível, arranhar
o castelhano e ser confundido com um local simplesmente não tem preço, como diz
aquele comercial. Ah, e trazer os alfajores Cachafaz (que Havanna, que nada!) e
o doce de leite Chimbote, lata grande, é claro. Precisamos de pouco para ser
feliz.
Te quiero, Buenos Aires.
Até o ano que vem.
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