Praia: código de vestimenta

A Antropologia é uma ciência fascinante. Ela parte de um pressuposto muito simples, o de que a interpretação da cultura exige do intérprete a capacidade de relativizar pré-conceitos, de colocar entre parênteses julgamentos de valor quanto à qualidade ou relevância simbólica das manifestações em análise. Estranhar o familiar, exotizá-lo; familiarizar o exótico, torná-lo próximo. Tanto maior porque os pré-conceitos e julgamentos são, eles mesmos, construções sociais, são cultura, e despirmo-nos de quem somos não é algo fácil. A Antropologia moderna, nos idos do século XIX, criou uma metodologia própria para que o exótico fosse desbravado e compreendido, a chamada “observação participante”. O antropólogo embrenhava-se no grupo a ser estudado e transformava-se, na medida do possível, em nativo. Comia da mesma comida, bebida da mesma bebida, participava dos rituais como um membro nato. Pensava-se que só assim, participando ativamente da vida social daquele grupo, seria possível compreendê-lo, de dentro. O estranho não apenas aproximava-se do familiar, mas acabava, supunha-se, confundindo-se com ele.  

Hoje, os antropólogos sabem muito bem que não é possível uma antropologia estritamente objetiva, e que isto não é tão relevante assim para a pesquisa científica. Qualquer indivíduo tem a capacidade de analisar manifestações culturais, sejam elas nativas ou estrangeiras, contanto que cumpram algumas exigências metodológicas própria da ciência antropológica. Assim como poderíamos imputar ao estrangeiro a incapacidade de compreender o “outro”, poderíamos imputar ao nativo a incapacidade de livrar-se das amarras culturais que o impedem de ter uma visão minimamente afastada. Resumindo: estar “dentro” ou “fora” deixa de ser critério de legitimidade da análise.

Entender o “outro”, por sua vez, não significa, necessariamente, compartilhar seus valores ou gostar do que se vê ou ouve. Eis o desafio da sociedade contemporânea: estabelecer um pacto de convivência entre formas de pensamento distintas a partir de um substrato simbólico comum, o respeito à diferença. E isto não é fácil, vide a proliferação de movimentos fundamentalistas de todos os matizes, não só religiosos.

Vejamos apenas um exemplo, o da adequação da vestimenta de praia.

Cidades litorâneas francesas proibiram o uso do chamado “burkini”, vestimenta criada especialmente para as muçulmanas que tem de cobrir boa parte do corpo no espaço público. Para a estilista que desenhou o modelo, ao contrário do que pensam os críticos, o “burkini” é fonte de liberdade às mulheres seguidoras do Islã, na medida em que lhes dá o direito de frequentar as belas praias da Cote D’Azur. Justificou-se a proibição como uma forma de combate ao radicalismo islâmico no país. Por sua vez, o imã de Florença, Izzedin Elzir, postou a foto de oito freiras, vestidas com seus hábitos divertindo-se em uma praia, recordando que "alguns valores ocidentais vêm do cristianismo e que observando as raízes cristãs também há pessoas que se cobrem quase totalmente". Vento que venta lá, venta cá...




Como antropólogo, compreendo o porquê de freiras e muçulmanas utilizarem, umas o “burkini”, outras o hábito, num ambiente em que a esmagadora maioria dos frequentadores deixa exposto o corpo ao sol em busca de um “bronze”. Como adepto de uma sociedade laica, por outro lado, não gosto do que vejo, acho ridículo ambos, misóginos, medievais, símbolos do que há de mais atrasado na relação entre os gêneros em tempos de empoderamento feminino, de domínio do próprio corpo, ainda que freiras e muçulmanas VOLUNTARIAMENTE se submetam aos desígnios divinos.

Apesar de meu desconforto com a invasão cada vez maior da religião no espaço público, contaminando, inclusive, decisões dos poderes executivo e legislativo, sou contra a proibição do uso de vestimentas “religiosas” na praia. Tanto quanto sou contra a proibição do uso de sungas por senhores, digamos, um pouco acima do peso e cuja pança pornográfica cultivada à base de muita cerveja e churrasco fere de morte os olhos das senhoras de boa família. Tanto quanto sou contra a proibição do uso de biquínis por senhoras, digamos também, um pouco acima do peso e cuja pança também pornográfica e ancas mais do que avantajadas atraem sobre si olhares curiosos e maldosos dos demais banhistas, biquínis aqueles desaparecidos em meio à montanha de carne disforme. Tanto quanto sou contra a proibição do uso de clareador de pelos, uma espécie de pasta branca lambuzada, pincelada sobre a pele, de cima a baixo, por muitas moças, espetáculo desagradabilíssimo de se testemunhar. Tanto quanto sou contra a proibição do uso, sobretudo por turistas estrangeiras, de vestimenta, a princípio, inadequada ao clima e ao espaço praiano, calças jeans, meias e sandálias.

Ridicularizar, sim. Proibir, não. Cada um na sua.


Parafraseando Voltaire (há controvérsias quanto à sua autoria), “posso não concordar com o que você diz (ou faz), mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo (ou fazê-lo)". 

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