Nunca dei muita sorte no clássico dos milhões, Flamengo e Vasco, e
isso vem desde quando estava na barriga da mamãe. Ela, grávida, foi com meu pai
num jogo decisivo com o cruzmaltino da colina, mais de cem mil pessoas nas
arquibancadas no finado Maracanã, Zico perde um pênalti defendido por Mazzaropi
e o jovem casal volta para casa de cabeça inchada. Na Taça Guanabara de 1994,
outro clássico com casa cheia, quase cento e oito mil pessoas, e mais uma
derrota, três a um para eles. Fui com meu pai. Antes do término da partida,
resultado consolidado, resolvemos ir embora antes da “muvuca”, da confusão,
ressabiados, inclusive, de possíveis brigas entre as torcidas adversárias e
entre as próprias organizadas do Flamengo (“facções” seria um termo mais
apropriado, dado a semelhança com táticas criminosas). Ledo engano. Descemos o
túnel que liga as arquibancadas ao corredor de acesso à rampa de entrada e
saída do estádio quando fomos surpreendidos por uma onda avassaladora de
marginais travestidos de torcedores, um arrastão assustador que entoava
cânticos de guerra e arrancava tudo o que havia em nossas mãos e bolsos. Meu
pai me puxou para a parede e ali, colados como lagartixas, esperamos a turba
passar. Em segundos, voltou a reinar a paz e tranquilidade. Esta, se não me
engano, foi a última vez que fui ao Maracanã com meu pai. Para ele, chegava ao
fim a longa história de amor com o “Maior do Mundo”. Dali em diante, somente
através da telinha da TV.
Bom, mas o que esperar de uma torcida de marginais, favelados,
molambentos, pergunta a torcida arco-íris.
A palavra molambo tem origem
africana, a partir da palavra mulambo, do idioma quimbundo, que até hoje é uma das línguas bantas mais faladas em Angola. No Brasil, durante o período da escravatura, negros trazidos de Angola
fugiam das senzalas e se refugiavam nos quilombos, o que
inseriu diversos termos do quimbundo na formação dos dialetos falados pelos quilombolas. E, principalmente após a abolição da escravatura, em 1888,
tais dialetos gradualmente passaram a colaborar para a ampliação do vocabulário brasileiro, como foi o caso da
incorporação de mulambo, molambo (corruptela de mulambo)
e de tantas outras palavras de raízes africanas.
Hoje, as palavras
“mulambo” ou “mulambada” são usadas de forma pejorativa para classificar
pessoas de baixa renda, sujas ou mal vestidas. Ou como sinônimo de “rubro-negro”
e “flamenguista”. Também há uma correlação entre “mulambada” e “favelados”,
associados à delinquência, à violência e à bandidagem. Nada mais natural,
portanto, de sermos assaltados por compatriotas (ser flamenguista é ser parte
de uma nação...), ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, quem sabe eu
e meu pai não sejamos marginais também, apenas ainda não descobrimos tal
vocação.
Canto
favorito da torcida adversária quando o Flamengo leva um gol:
“Ela, ela,
ela, silêncio na favela!”.
No
excelente documentário “Flamengo e Fluminense: 40 minutos antes do nada”, depoimentos
de torcedores rubro-negros e tricolores dão cor à rivalidade clubística e sua
visão humorística e sarcástica sobre o inimigo:
“Tem um
grito contra o Flamengo que, confesso, eu amo, que é o ‘favela’. Adoro quando
gritam isso contra nós porque, no fundo, eu acho que é o maior elogio que se
possa fazer. É de uma poesia... Acho um dos momentos mais bonitos da história
do estádio do Maracanã. Ela, ela, ela, silêncio na favela”.
“Ele
(torcedor do fluminense) é diferente em tudo. É um torcedor fidalgo, é uma
classe acima do patamar normal. Quando o pessoal comemora (um gol), se abraça,
se beija, é uma fidalguia total. Não é uma torcida, é uma família. (...) Aqui
em casa, todo mundo nasceu rubro-negro: pobre, desdentado, sujo, pegajoso e
levando tapa do médico”.
Detalhe
importante: o depoente tricolor é desdentado.
O pobre,
preto e favelado, o mulambo rubro-negro é “esculachado” pelo preto, pobre e
favelado não-rubro-negro (anti-rubro-negro) porque o futebol é uma realidade à
parte com regras e valores próprios, porque o futebol estabelece hierarquias inexistentes
na realidade concreta destes torcedores rivais. Porque um é fidalgo, elite
espiritual, e o outro é um pobre diabo maltrapilho com espírito de marginal.
Entre as cinco da tarde e sete da noite de um domingo qualquer, dia de
clássico, os vizinhos favelados, que levam duas horas de casa para o trabalho e
mais duas horas do trabalho para casa, que é explorado pelo patrão, que sofrem
preconceito pela cor da pele em situações comezinhas do dia-a-dia, “esculachados”
nas blitz policiais, incorporam máscaras de personagens fantásticos, reis e
súditos, que guerreiam por uma glória efêmera, até o domingo seguinte.
Mas,
campeão mundial mesmo, aqui no Rio de Janeiro, só o Flamengo.
Links:
Documentário:
https://www.youtube.com/watch?v=tynoRS4OfqM
Definição
de molambo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Molambo
Imagem: http://blogdomarciotavares.blogspot.com.br/2011/10/torcida-arco-iris-esta-de-parabens.html
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