Ao lado da escola particular onde estudei por onze
anos, do primeiro ano do ensino fundamental até a entrada na faculdade, há uma
escola pública municipal cuja imagem que construí naquele período, e que
persistiu até a bem pouco tempo, foi bastante negativa. Lembro, por exemplo,
que os alunos daquela escola ficavam debruçados nas janelas das salas de aula,
que davam para o pátio do recreio da minha escola, nos provocando com gritos e
xingamentos. Mesas e cadeiras quebradas e amontoadas podiam ser vistas na sua
área externa. Escola pública era sinônimo de baderna, pichações nas paredes das
salas de aula, ensino de segunda linha relegado a famílias sem condições
financeiras de prover educação de qualidade aos filhos. Público é ruim, privado
é bom, como se fosse um dado da natureza. No entanto, o mesmo raciocínio não
servia para o ensino superior, especialmente a Universidade Federal do Rio de
Janeiro, onde me graduei e segui na pós-graduação.
Nosso filho, nos seus quase oito anos de idade, sempre
frequentou instituições de ensino particulares. Até este ano, estudou numa
escola cujo projeto pedagógico refletia nossa visão de mundo, baseada na ideia
de democracia política, cultural, sexual, na ideia de respeito à cidadania como
fundamento de uma sociedade democrática, diversa, plural. Não é qualquer escola
que resolve “descomemorar” o golpe militar que implantou a ditadura no Brasil
em 1964, ou que dá liberdade aos alunos de intervir artisticamente nos seus
muros. Escola sem Partido uma ova.
Então veio a crise. Embora muitos alunos fossem
oriundos daquilo que, certa vez, a filósofa Marilena Chauí chamou de “classe
média fascista”, muitas não conseguiram aguentar o tranco, obrigadas a se
adaptar à perda de poder aquisitivo, à dificuldade de “recolocação no mercado
de trabalho”, inviabilizando o pagamento da mensalidade de cerca de R$ 2.000,00.
A solução foi entrar em processos seletivos em instituições públicas de ensino
reconhecidamente de excelência na cidade do Rio de Janeiro. Este foi o nosso
caso, motivados também por alguns questionamentos relacionados à forma como a
escola lida com o desequilíbrio no processo de aprendizagem de cada turma,
necessariamente heterogênea em sua composição.
Miguel foi selecionado para a primeira das cinco
escolas que indicamos como sendo de nossa preferência no formulário de
inscrição. A partir deste ano, começa sua aventura na rede municipal de ensino.
Ao saber da notícia, chorou muito. E chorou ainda mais forte quando soube que a
escola é pública. Tentamos compreender o quê ele via de tão negativo na escola
pública. Em primeiro lugar, seriam crianças mal-educadas, no sentido de
respeito ao espaço público, uma vez que as crianças com quem brinca na pracinha
em frente de casa, estudantes de escolas públicas, costumam jogar lixo no chão
e, quando chamadas à atenção, ignoram solenemente. Em segundo lugar, na sua
leitura do mundo, escola pública é de gente pobre, tomando como referência de
pobreza moradores de rua para quem entregamos, Miguel nos acompanhando, cestas
de natal.
Haja trabalho de desconstrução de estereótipos e estigmas,
explicar que ser pobre não é ser, necessariamente, mal-educado, e ser rico ou
classe média, por outro lado, não é ser, necessariamente, a fina flor da
sociedade. Que escola pública não é ruim porque é pública, nem é ruim porque lá
só vai gente pobre. Que ser pobre não é vergonha, vergonha é roubar aquilo que
não lhe pertence, e que a escola pública é ruim porque ela é roubada ano sim,
outro também. Que o pleno exercício da cidadania inclui uma educação pública de
qualidade, direito garantido na Constituição. Que o mesmo respeito que exigimos
no trato da coisa pública, na separação entre interesse público e interesse
privado, no respeito às regras de comportamento no espaço público (tipo jogar
lixo na lixeira, não cuspir no chão, parar no sinal vermelho, respeitar a faixa
de pedestres, não furar a fila do mercado, não mandar o clássico “você sabe com
quem está falando”, não tentar levar vantagem em tudo) temos de exigir no
cumprimento das obrigações do Estado, dentre as quais, a educação. Que a
educação pública não é “de graça” e, consequência inevitável e senso comum no
país, de pior qualidade, mas é paga por todos nós. Que ser público não
significa, portanto, ser “de ninguém”, mas de todos nós.
A escola pública é um choque de realidade, e muito
bem-vindo. Na matrícula, perguntaram a cor do Miguel, embora houvesse uma foto
dele na frente da funcionária. Perguntaram se recebíamos bolsa-família.
Perguntaram à Renata se o pai do Miguel era vivo e se moravam os três na mesma
casa. Se autorizávamos ou não o ensino religioso. Miguel terá contato com
colegas de diferentes cores e origens culturais, podendo exercitar na prática
aquilo que tanto valorizamos, o convívio com o diverso que nos enriquece
enquanto seres eternamente em construção.
Ainda não estou preparado para abandonar o plano de
saúde e depender do SUS. Um passo de cada vez.
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