Logo quando entramos na faculdade de ciências sociais,
na disciplina “Introdução à Antropologia”, lemos um breve artigo do antropólogo
Horace Minner intitulado “O ritual do corpo entre os Sonacirema”, povo que vive
numa extensa porção de terra que vai do Canadá ao Caribe, e cujas “atitudes
quanto ao corpo” têm tanta influência em suas instituições que a descrição de suas
crenças e práticas mágicas joga luz sobre os extremos a que o comportamento
humano pode chegar.
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo dos
curandeiros em termos de prestígio, estão os chamados “homens da boca sagrada”.
Os Sonacirema acreditam que a condição da boca possui influência sobrenatural
nas relações sociais, assim, dentre os rituais do corpo, cotidianamente
realizados por todos os membros do povo, há um rito bucal, consistindo na
introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de
creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos
altamente ritualizados. Os “homens da boca sagrada” são procurados, geralmente,
uma ou duas vezes por ano e seu templo é assim descrito pelo antropólogo norte-americano:
“No seu templo este mago possui uma impressionante
parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas
e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica em uma
quase e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas,
alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram
buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados,
para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o
objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter
extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os
nativos retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes
continuem a se deteriorar”.
Para os neófitos que acabavam de entrar no maravilhoso
mundo do relativismo cultural, da máxima de que nossa missão, como futuros
fofoqueiros oficiais da sociedade, legitimados pelo diploma acadêmico, é
estranhar o familiar e familiarizar o estranho, ler os rituais do corpo dos
Sonacirema foi um bem-vindo soco no estômago. Coloquei em perspectiva meu
etnocentrismo, minhas verdades, minha arrogância de que “nós” (?) estamos
certos e os “outros” estão errados, que somos melhores que “eles”. Isto porque,
como o leitor mais atento já percebeu, os Sonacirema são os Americanos e os “homens
da boca sagrada” são os dentistas.
A descrição pormenorizada de Minner, sua etnografia
detalhada de rituais aparentemente incompreensíveis, exóticos e selvagens, em
nada parecidos com o que temos em “casa”, é a primeira lição de quem quer analisar
honestamente os grupos sociais e a forma como vivem a realidade, sua cultura. Didaticamente,
nos ensina que é fundamental estabelecermos um distanciamento intelectual e
emocional do objeto a ser estudado/interpretado, embora seja admissível que a
imparcialidade asséptica é, embora metodologicamente desejável, improvável de
alcançar. Como já observado por outro antropólogo, Clifford Geertz, com relação
à inevitabilidade da subjetividade na ciência antropológica, não é pelo fato de não podermos realizar uma cirurgia
em ambiente inteiramente asséptico que devemos realizá-la num esgoto.
As reminiscências das primeiras
lições de antropologia, lá se vão mais de duas décadas, me veio à cabeça a
propósito deste tal de “lugar da fala”, expressão utilizada por grupos imbuídos
de uma narrativa que, de um lado, pretende combater a marginalidade, os
estereótipos e estigmas a eles associados e historicamente sedimentados na
sociedade brasileira – mulheres, indígenas, negros, LGBT -, e, de outro, a afirmação
de uma identidade positiva no espaço público carregada de simbolismo (exercício
da cidadania cultural) e razão prática (mercado de trabalho).
Nesta lógica, quem está “dentro” das
fronteiras do grupo tem legitimidade para falar “em nome” dele; quem está para
além das fronteiras, não tem a palavra porque “não sente” e “não vive” aquilo
que os membros do grupo sentem e vivem. Uma consequência possível nesta luta
pelo poder de definir a representação simbólica a ser produzida e reproduzida interna
e externamente, a “cara” do grupo, é a imposição de um discurso homogêneo repressor
de vozes dissonantes, que condena a polifonia. O consenso, para quem se atribui
o “lugar da fala”, é pré-condição para a manutenção da segurança das fronteiras
do grupo, mantem o território puro, afasta o perigo da contaminação simbólica,
da “sujeira” trazida por forasteiros imediatamente identificados como
opressores, racistas, misóginos, elitistas.
Parece-me que o “lugar da fala”, da
forma como se apresenta hoje, é uma versão entortada do multiculturalismo que,
em vez de ser retroalimentado pelo contato, pela fricção entre diferentes,
caminha em direção à cristalização das identidades e, inevitavelmente, dos
fundamentalismos de vários matizes – político, religioso, cultural. Branco fala
de e para branco; preto fala de e para preto; indígena fala de e para indígena;
mulher fala de e para mulher; evangélico fala de e para evangélico; judeu fala
de e para judeu e assim por diante. Sem possibilidade de compartilhar
vivências, de estabelecer pontos de contato, de ter a humildade de escutar e
concordar com interpretações distintas da versão autorizada pelos “guardiães da
verdade”.
Pelo andar da carruagem, o ofício de antropólogo
se tornará obsoleto mais cedo do que esperamos.
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