Na minha época de estudante, recebíamos,
logo no início do ano letivo, uma lista com os nomes dos pais dos colegas e
respectivos telefones residenciais. Se quisesse convidar um amigo para brincar
comigo num sábado à tarde, procurava o número na folha de papel ou pedia para
papai ou mamãe fazê-lo, por gentileza. Finda a era analógica, e agora pai de um
homenzarrão de nove anos, comunico-me com os pais dos colegas de escola através
de um (mais um) famigerado grupo de WhatsApp. Rápido e indolor, certo? Bem, nem
sempre, nem sempre...
Um dos pais, com quem meu filho estabeleceu
relação um pouco mais estreita - gostam de jogar futebol, brincar no telefone
celular e trocar cartões Pokémon –
passou a encaminhar mensagens de apoio a um candidato à presidência da
república que ensina crianças pequenas a imitar armas de verdade com os dedos
das mãos, que faz apologia à prática da tortura e não esconde seu apreço a
torturadores notórios, que já afirmou que “ter filho gay é falta de porrada”,
que já “pesou” quilombolas em arrobas (medida usada para pesar gado), que já
afirmou que não estupraria uma colega deputada federal porque ela “não
merecia”, que “suicídio acontece, pessoal pratica” em referência ao assassinato
do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI em São Paulo, que não
critica as declarações de seu candidato à vice-presidente de que o brasileiro
herdou a indolência do índio e a malandragem do africano, nos moldes do racismo
científico de Nina Rodrigues e seu “As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”. Ou seja, o pai do colega
se sentiu no direito e livre, leve e solto para compartilhar seu apreço ao
discurso do ódio, da intolerância e da violência.
Resolvi compartilhar o episódio nas redes
sociais e fui interpelado sobre a idolatria a Hugo Chávez, Fidel Castro, Stálin
e Che Guevara, qual seria a minha opinião a respeito destes personagens. Fiquei
um tempão matutando sobre essa fala “em cima do muro”, a necessidade de ser
“imparcial” e analisar ambos os lados, de contrabalançar os preconceitos dos
outros com os nossos próprios preconceitos, de relativizar os erros alheios a
partir da necessária autocrítica, o direito inalienável de resguardar a
liberdade de expressão. E, então, descobri que se trata, este contra-argumento,
de uma estratégia antiquíssima, embora atualíssima, chamada “whataboutism”.
E o que é o “whataboutism”? É a estratégia
de responder a uma crítica com outra crítica em sentido contrário, com
argumentos centrados em ações iguais ou similares levadas a cabo pelo indivíduo
que criticou inicialmente. Em bom português, o “whataboutism” pode ser
traduzido como “E o que dizer, então...”. O interlocutor que se utiliza desta
retórica, propositalmente ou não, no intuito de relativizar moralmente seus
valores e ações, justifica um erro com o outro, “colocando o dedo na ferida” do
adversário porque “atire a primeira pedra, quem nunca...”. No caso das eleições
presidenciais brasileiras, o equívoco mais óbvio nesta perspectiva do “toma lá,
dá cá” é a vinculação imediata dos críticos ao candidato da extrema-direita à
esquerda ou extrema-esquerda e a conseqüente acusação de acumpliciamento em
atos de corrupção e adoração e conivência a regimes autoritários.
O que me chama
mais a atenção neste pretenso jogo de soma zero, que os paladinos da neutralidade
cinicamente colocam sobre a mesa, lobos
em pele de cordeiro, é o seu silêncio quando confrontados às questões
relacionadas ao racismo, à homofobia, à misoginia, à tortura institucional.
Vendem a alma ao diabo, relevam o discurso do ódio e da violência em nome de um
anti-petismo ou anti-esquerdismo – o viés classista é evidente, embora não seja
o único, em minha opinião - ou anti qualquer coisa, contanto que “mude tudo isso que está aí”, embora nem
mesmo eles saibam exatamente o que é “tudo isso aí” e nem o quê e como se daria
tal mudança.
Acredito que boa
parte dos eleitores do Bolsonaro carrega em si uma raiva, uma violência, uma
frustração meio indefinida e indefinível, além, é claro, de uma indisfarçável
incapacidade de conviver com a diferença cultural porque o diferente questiona
nossas certezas e as incertezas são fonte de angústia e medo. Tudo isto se mistura ao conservadorismo e à
intolerância, à ideia de que, como certa vez ouvi, homem não pode aprender a
costurar porque isso é coisa de mulher ou que “respeito os homossexuais, mas,
na minha casa isso não entra”, sendo a “casa” entendida, para mim, no sentido
antropológico, aquele lugar em que somos acolhidos, aninhados, respeitados, solidários.
Na visão desta galera, o Brasil não é a casa de quem vive a sexualidade fora da
casinha ou do indivíduo com pênis que, blasfêmia, resolver aprender a cozer uma
echarpe para a namorada.
Tenho vivido
dias angustiantes. Percebo que a sociedade brasileira é intolerante e violenta. Nunca deixou de ser, afinal de contas. O homem cordial de “Raízes do Brasil” ficou para trás. Não quero isso para o
meu filho, ele não merece crescer em meio a tanto ódio, nem eu, pensando bem,
nem ninguém. Eu quero viver numa sociedade culturalmente saudável, eu quero que
o netinho da cozinheira do meu restaurante favorito, que outro dia sentou na
minha mesa e começou a contar que gosta de brincar de pique - esconde e
pique-pega e que tem um cachorro “grandão” e que também tem uma gata que se
chama “mia”, eu quero que este moleque não ache normal torturar alguém por pior
que este alguém seja, que “bandido bom, é bandido morto”, e que ele possa amar
quem ele quiser sem correr o risco de ser linchado simbólica e fisicamente.
Por via das
dúvidas, estou renovando meu passaporte.
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