Certa vez, há muitos anos, um sobrevivente do
holocausto afirmou, diante de um auditório lotado, que o sofrimento pelo qual
os judeus passaram nas mãos dos nazistas era algo inigualável, que não havia e
nunca haveria como comparar sua dor com a dor infligida sobre qualquer outro
grupo humano a qualquer tempo. Era como se pudéssemos estabelecer um critério
que nos permitisse medir objetivamente o grau de perversidade do algoz,
traduzindo quantitativamente a dor física e psicológica.
Naquele momento, eu havia acabado de ler um denso
relato sobre a guerra civil em Ruanda, marcada pelo uso de “baixa tecnologia”,
ou seja, facões em vez de pistolas e câmaras de gás. Em cem dias, oitocentos
mil ruandeses morreram. A fala do sobrevivente me causou um profundo desgosto e
contrariedade, porque considerava inadmissível hierarquizar, como num concurso
macabro e perverso, quem tinha a primazia de dizer, a alto e bom som, que “seu
grupo” sofreu mais do que o “adversário”. Desqualificar a subjetividade era uma
demonstração de egoísmo e ausência total de empatia com a dor do outro.
As pautas identitárias são, em essência, democráticas
e democratizantes porque advogam a igualdade de direitos socioculturais a
grupos historicamente marginalizados, como os indígenas, os negros quilombolas,
as mulheres e os gays. No entanto, a fragmentação e afirmação de múltiplas
identidades vieram acompanhadas de fronteiras simbólicas entre estas mesmas
identidades, representadas especialmente pelo que se chama de “lugar da fala”.
Nesta perspectiva, cada um sabe onde lhe dói o calo e pouco se lhe importa onde
dói o calo alheio. Cada um no seu quadrado, isolado. Como no discurso do
sobrevivente do holocausto.
Neste mundo de identidades ilhadas e egoístas, incapazes
de construir pontes, de estabelecer um discurso comum de luta pelos direitos
humanos, a solidariedade torna-se praticamente inviável. Judeus falam por
judeus, negros falam por negros, brancos falam por brancos, gays falam por gays,
mulheres falam por mulheres. Um branco nunca pode falar por um negro e um negro
nunca pode falar por um branco, é uma questão de autoridade moral, de ser ou não
ser parte do grupo do qual se fala. Falar COM,
sim; falar POR, não.
O “lugar da fala”, da forma como tem sido exercido,
parte do pressuposto de que a identidade afirmada é homogênea, experimentada e compartilhada
por todos os membros em cuja categoria de pertencimento nela se encaixam.
Ignoram-se narrativas dissonantes do “nosso grupo” e generalizam-se estereótipos
e estigmas do “outro”. A construção de um “tipo ideal” interno facilita, por
outro lado, a identificação do “inimigo” que deve ser combatido. Um outsider,
incapaz de entende-lo e de colocar-se no lugar do outro porque o outro assim
decidiu, não pode solidarizar-se com ele e tampouco defende-lo em situações
extremas. Novamente, cada um no seu quadrado.
Lembrei-me de Bertolt Brecht:
“Primeiro, levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo”
Este poema de Brecht poderia ser o hino do “lugar da
fala” excludente e exclusivo. Prefiro a frase da cineasta norte-americana
Rachel Grady:
“Always put
yourself in others’ shoes. If you feel that it hurts you, it probably hurts the
other person, too”
Então, quando te disserem “ponha-se em seu lugar!”,
responda “ponha-se no lugar do outro!”.
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