A companhia aérea Virgin Atlantic resolveu incluir no
seu cardápio uma deliciosa e suculenta “salada de cuscuz palestina”. Não tardaram
em surgir críticas de passageiros descontentes com a “homenagem”, acusando a
voadora de “simpatizar com terroristas”. Houve quem sugerisse a mudança do nome
da iguaria, para “salada judaica”, porque, afinal de contas, é preciso levar em
consideração que os judeus “vivem, na terra que eles (os palestinos) dizem
ocupar, há mais de três mil anos”. Diante de tamanha pressão nas redes sociais
e da ameaça de um boicote milionário, a Virgin Atlantic se viu obrigada a “rever
seus conceitos”, neutralizando suscetibilidades – quer dizer, deixando de ferir
uma, para ferir a outra -, rebatizando o acepipe singelamente de “salada de
cuscuz”.
A guerra pelo poder de nomear a salada, se “palestina”
ou “judaica”, não é uma quimera, uma disputa infantil. Aquilo que comemos, as
comidas, a elaboração cultural dos alimentos, estão encharcadas, embebidas de
narrativas históricas e memórias afetivas e gastronômicas que embasam a
elaboração de nossas identidades. Não é à toa que a culinária é parte
fundamental na afirmação de identidades étnicas. Compartilhar um prato “típico”
é compartilhar uma vivência comum, é autorizar e legitimar a existência de quem
nos oferece o manjar. O resultado da guerra pelo poder de nomear, a capacidade
de apropriar-se simbolicamente de determinados bens materiais – uma mistura de
grãos, folhas e um molho vinagrete, por exemplo - significa, portanto, a
possibilidade de ser ou não reconhecido como um “outro significativo”. É a
diferença entre a visão e a invisibilidade. Entre vida e morte.
A apropriação simbólica da comida como meio de expressão
identitária fez-me lembrar de um texto muito legal do antropólogo Peter Fry,
chamado “Feijoada e ‘soul food’: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos
e nacionais”, publicado originalmente em 1977, em que ele relata exatamente a
importância de compreendermos o “lugar da fala”, a perspectiva a partir da qual
se definem os critérios de pertencimento e exclusão das fronteiras do grupo e a
centralidade das relações de poder neste contexto. Vale a reprodução de uma
passagem, que serve para ilustrar, também, o que aconteceu no caso da companhia
aérea:
“Em julho último, em Nova Iorque, decidi oferecer a
meus amigos um prato brasileiro típico. Com muita dificuldade, conseguir
encontrar feijão preto, costeletas de porco defumadas, couve e demais pertences
e assim pude preparar uma feijoada, que servi com a devida pompa. Foi aí que um
de meus amigos, um preto do Alabama, depois de ter cuidadosamente olhado e
cheirado a travessa, destruiu todo o suspense observando que se tratava
simplesmente da comida à qual estava acostumado desde criança. O que é, no
Brasil, um prato nacional é, nos Estados Unidos, soul Food. Está claro que a origem do prato é a mesma nos dois
países, pois em ambos este item da cultura culinária foi elaborado pelos
escravos utilizando as sobras do porco desprezadas por seus senhores. A
diferença está no significado simbólico do prato. Na situação brasileira, a
feijoada foi incorporada como símbolo da nacionalidade, enquanto nos Estados
Unidos se tornou símbolo da negritude, no contexto do movimento de liberação
negra”
Comer, definitivamente, é ato político.
Sobre o cardápio da discórdia:
Receitas da “salada palestina”:
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