Por anos, fomos juntos aos concertos vespertinos da Orquestra Sinfônica Brasileira no Theatro Municipal o Rio de Janeiro. Enquanto morei em Copacabana, a encontrava na portaria do prédio e seguíamos para a estação de metrô Cardeal Arcoverde em direção à Cinelândia. Ela nos comprava a temporada, uma meia dúzia de concertos distribuídos ao longo do ano, geralmente aos sábados. Fazia questão de ser na plateia, no meio, visão privilegiada dos músicos. Chegávamos cedo, eu gostava de ver a casa se enchendo aos poucos, lotando a plateia, os balcões e a galeria a depender do programa do dia. Ficamos “íntimos” de nossos vizinhos de poltrona. Fingíamos apreensão com a entrada dos músicos - "será que hoje estará o casal de gêmeos violoncelistas?” - e nos olhávamos de rabo de olho quando, inevitavelmente, segundos antes do início da apresentação, alguém sempre começava a tossir.
Desde pequeno, adquiri o saudável hábito de dormir em sua casa. Tenho, até hoje, a malinha azul da Turma da Mônica onde meus pais colocavam o pijama e a muda de roupa para o dia seguinte, de sábado para domingo, normalmente. É engraçado porque, na minha memória, a mala era gigante; agora, olhando-a guardada no armário aqui de casa, com a importantíssima tarefa de acondicionar antigos trabalhos escolares do Miguel, mais parece uma maleta de médico.
A tradição perdurou por anos a fio. Barbudo já, aluno de faculdade, continuava “batendo ponto” lá. O dia mudou, geralmente de terça para quarta. Não me perguntem o porquê, escolhas aleatórias. Chegava no final do dia e, se estivesse calor – o que, no Rio de Janeiro, significa uma hipótese retórica -, aproveitava a piscina do prédio e sabia que, eventualmente, se olhasse para o sexto andar, a veria me observando da janela. Então, dávamos tchau um para o outro. Assistíamos juntos ao telejornal da noite. Eu sentava no chão à sua frente, acomodada na poltrona de couro da sala, e pedia cafuné da cabeça. Ela deslizava seus dedos por um tempo e, então, fingindo irritação, dizia “ai, chega, Celo!”.
Era uma cozinheira de mão cheia. Meu lanche da tarde – nunca tivemos o hábito de jantar – era composto de três pratos e ela brincava perguntando se a ordem estava certa, “sólido, líquido e sólido, né?”. Primeiro, queijo quente. Em seguida, uma fantástica sopa de legumes, a melhor sopa de legumes que já tomei na vida, com pedaços de cogumelos “funghi secchi” que trazia do exterior, era uma época em que esse tipo de iguaria não era fácil de encontrar por aqui. Pra finalizar, uma salada substanciosa de tomates picado, pepino ralado, ricota bem amassada e iogurte para dar a liga. No almoço, sinto o cheiro do frango assado, das batatas coradas e do repolho roxo refogado. Na dispensa, sempre tinha guaraná e limonada da Brahma. Eventualmente, assava biscoitos de chocolate com raspas de coco, cuja receita a Renata herdou e hoje, quando como, me faz sorrir. E a pizza de massa grossa, saborosíssima, nenhuma extravagância, queijo, cebola e pimentões, com que nos brindava nos lanches de domingo à tarde, fez escola com minha mãe. A casa tinha seu cheiro.
Era uma leitora voraz. À cabeceira da cama, sempre havia livros, muitos dos quais emprestados da biblioteca do Instituto Brasil-Estados Unidos, que ficava na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Também havia um dicionário polonês/inglês-inglês/polonês, usado quando alguma palavra fugia à memória. Eu sentava a seu lado e brincava de ler, ou melhor, tentar palavras em polonês, daquele dicionário, para que ela traduzisse para o português. Que língua o polonês! E ela ainda tinha a pachorra de dizer que o português que era difícil...
Na saleta que separava a sala de estar dos quartos, havia emoldurada uma foto sua em preto e branco. Estava sorrindo para a câmera, com roupa de esqui. Não me lembro da data, escrita na parte inferior esquerda, mas era na cidade de Sasow, na Polônia, antes da segunda guerra. Ela foi uma moça muito bonita. Loura de olhos claros – embora eu prefira as morenas -, desafiando o estereótipo do judeu, foi para um campo de trabalhos forçados - eufemismos, eufemismos... -, e conseguiu-se salvar com papéis arianos graças a um padre católico, escondendo-se numa aldeia polonesa. Não gostava de falar sobre esse período trágico e traumático. Memória, identidade e esquecimento. Sua vaidade a fez usar peruca, loura, por muito tempo.
Chamava-se Lucia. Em Montevidéu, onde encontrou porto seguro após a hecatombe, foi registrada pelo meu avô, David, como Lucy, vai saber por que. Não gostava do anglicismo, preferia apresentar-se, sempre que fosse necessário, como Lucia. Para mim, sempre foi Lula, apelido carinhoso, como Lulenko.
Depois da morte do vovô, em 2000, nunca mais foi a mesma. Como se diz popularmente, “emburacou”. Tinha 74 anos, havia vivido muito, passou por “poucas e boas”, viajou o mundo, teve dois filhos e cinco netos. Conheceu seu primeiro bisneto, o meu filho.Tinha perdido a vontade de viver, era essa impressão que me passava. Morreu em 2011.
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