Imigrantes

Meu avô materno nasceu no dia 03 de março de 1916 numa pequena cidade polonesa – que os judeus chamam, no dialeto ídiche, de shtetl, ou vilarejo - chamada Brok, distante 80 quilômetros da capital, Varsóvia, para onde viajava com frequência. A viagem, de trem, levava cerca de uma hora e meia. Lá, ia ao teatro e aos concertos sinfônicos, e aproveitava para receber o dinheiro da venda de biscoitos da padaria do pai, meu bisavô. Então, os judeus conviviam bem com os poloneses. Meu avô tinha amigos não judeus com quem jogava bridge, até mesmo o prefeito entrava na brincadeira.  Sua vida virou de cabeça para baixo no dia primeiro de setembro de 1939 quando, ao voltar para visitar os pais – estava em Varsóvia, escrevendo para a seção de Cultura de um semanário - a guerra chegou. 

Os habitantes da pequena Brok fugiram em direção a outro vilarejo do outro lado do Rio Bug, à medida em que os alemães se aproximavam. Meus bisavôs aconselharam meu avô a viajar para o exterior, e assim foi feito. Ele chegou a Bialistok, já mais próximo da fronteira com a Lituânia, ainda um país independente, considerado trampolim para o mundo livre.  Era um outono muito frio e úmido, e não havia lugar para dormir. Foi morar na Estação Ferroviária, não havia lugar para sentar, dormia em pé, apoiado na parede. Também não havia o que comer. Por um pedaço de pão, ficava-se de meia-noite às sete da manhã numa fila gigantesca. Com o pouco dinheiro que carregava, ele e um amigo conseguiram subornar o soldado lituano na fronteira, e chegaram à capital, Vilna, onde foi admitido na Faculdade de Humanidades, estudou Letras, Literatura e Filologia. Passava os dias na biblioteca da universidade, queria escrever uma monografia sobre sua Brok. 

Logo surgiu um boato de que o consulado do Japão na cidade de Kaunas estava emitindo vistos de trânsito, desde que lhe trouxessem um visto de entrada para algum outro país. Sabia-se que o cônsul holandês não emitia vistos, mas sim um carimbo que declarava isenção de visto para os territórios holandeses ultramarinos, como Java e Curaçao. Com toda a documentação, ainda era preciso pagar pela viagem até Vladivostok, na União Soviética para, de lá, embarcar no navio japonês “Amakusa Amaru” até o porto de Tsuruga, no Mar do Japão. Meu avô pagou a viagem com um relógio de ouro suíço, que havia hipnotizado um oficial soviético. A ida para Vladivostok, passando por Moscou, a bordo do Transiberiano, foi marcada para o dia 26 de fevereiro de 1941, dando-lhe algum tempo para despedir-se dos pais, que haviam ficado na Polônia. Eles acabaram morrendo em Auschwitz, junto com outros trinta membros da família. Seus irmãos foram enterrados vivos.  

Depois de quarenta horas no navio – que mais parecia uma grande barcaça, com tatames - chegou ao porto de Tsuruga, de onde um trem o levou, com centenas de outros refugiados, à cidade de Kobe. Lá, o Jewish Committee, comitê formado por judeus russos e poloneses que ali já viviam, lhes recebeu da maneira possível. Os refugiados recebiam um e meio iene por dia, que correspondia a 30 centavos de dólar, para viver. Para comprar mantimentos, um iene e meio por dia significava “nem morrer, nem viver”.  

De uma hora para outra, os japoneses pararam de prolongar a permanência dos refugiados “em trânsito”, cujo visto valia por vinte e um dias, embora sempre fosse prorrogado por mais duas semanas e depois por mais duas semanas e assim se ia vivendo. Então, meu avô partiu de Kobe para Shangai, na China, no fim de agosto de 1941. Lá, encontrou um clima horrível, calor insuportável no verão com 100% de umidade e, no inverno, um frio de cortar os ossos acompanhado de ventanias. Ali, já viviam dezesseis mil refugiados judeus austríacos e alemães.  

No começo de 1942, junto alguns amigos jornalistas de Varsóvia, organizou um grupo de teatro, que encenava no belo salão do Jewish Club, o Clube Judaico. A iniciativa durou apenas seis meses. Nesse ínterim, começou a trabalhar no comércio: ele e um amigo abriram uma fabriqueta de elaboração de couro cru, fabricavam bolsas femininas e outras miudezas vendidas para firmas chinesas, eram uma novidade. No final desse mesmo ano, uma delegação de oficiais alemães, chefiada por Heinrich Himmler, desembarcou em Shangai com o intuito de negociar com os japoneses a liquidação dos judeus. Embora o plano tenha fracassado, os japoneses acabaram criando um gueto, para onde foram mandados todos os judeus que ali haviam se refugiado.  

Para sair do gueto era preciso obter o chamado Special Pass, fornecido às pessoas que trabalhavam na cidade. Meu avô se recordava de dois sádicos japoneses, responsáveis pela emissão desses passes, que batiam e esbofeteavam. Um deles, baixinho, costumava subir na mesa e, quando aparecia alguém mais alto do que ele – o que não era raro de acontecer – ele tirava os óculos e o boné e começava a dar tapas e a gritar “Eu sou mais alto que você! Eu sou o rei dos judeus! I am the king of the Jews”.  

Em julho de 1945, aviões americanos passaram a bombardear a área da cidade onde se encontravam a estação de rádio japonesa e fábricas de munição. Alguns colegas do meu avô tinham aparelhos de rádio, ouvia-se estações clandestinas, às vezes de Los Angeles, e foi então que tomaram conhecimento da bomba atômica lançada em Hiroshima no dia 8 de agosto. Eles não sabiam o que aquilo significava, mas ouviram perfeitamente bem que dezenas de milhares de pessoas haviam morrido. Sobre a Europa e os parentes que haviam ficado para trás, nenhuma informação concreta. Souberam, através de uma curta notícia publicado num jornal soviético, que havia ocorrido um levante no Gueto de Varsóvia, que resultou na morte de mil oficiais nazistas. Meu avô e seus colegas quebravam a cabeça para entender aquilo, alguns não acreditavam que mil homens da SS haviam sido mortos, alguns não acreditavam que sequer cem deles haviam tombado. Dias depois, souberam do lançamento da bomba sobre Nagasaki.  

Após a rendição dos japoneses, os norte-americanos passaram a controlar Shangai. Meu avô chegou a trabalhar para eles em algo relacionado à supervisão de depósitos de mantimento. Um oficial norte-americano concedeu-lhe uma carta de recomendação, que eu não sei para que servia exatamente, mas tal documento ajudou meu avô a receber, alguns meses depois, o primeiro visto americano, em Paris. No dia 6 de dezembro de 1946, deixou Shangai num navio francês André Lebon. Passou por Hong Kong, Saigon, Sri Lanka, Djibuti, onde ficou alguns dias e conheceu judeus iemenitas. Quando chegou em Marselha, tentou atravessar o Canal de Suez para chegar em Israel, mas soldados egípcios o pegaram. Também em Marselha, conseguiu um visto uruguaio, graças ao empenho de um primo que havia sobrevivido. Seguiu para Paris e, de lá, rumou para Nova Iorque, antes de desembarcar em Montevidéu no final de agosto de 1947. Chegou a voltar à Polônia tentando reencontrar parentes sobreviventes, em vão.  

Em Montevidéu, trabalhou num jornal diário, escrevendo uma coluna sobre assuntos relacionados à vida judaica e acontecimentos gerais. Em março de 1949, conheceu minha avó, com quem se casou e viveu até seu falecimento. Minha mãe nasceu lá em janeiro de 1951. Em outubro de 1950, fui convidado para editar, em São Paulo, um novo jornal judaico recém-fundado, lá ficando por menos de três meses quando os donos do jornal Imprensa Israelita o levaram para o Rio de Janeiro. Meu avô dirigiu esse jornal de finais de janeiro de 1951 até 1990. Em outubro de 1955, começou a transmitir, diariamente, por meia hora, inclusive aos sábados, um programa de rádio - A Voz Israelita - na Rádio Mundial. O programa durou 27 anos, até que um grupo autodenominado “Comando Delta” ameaçou explodir a torre de transmissão da Rádio Copacabana, e o programa saiu do ar.  

A saga do meu avô materno foi registrada visualmente no depoimento concedido, em ídiche, no dia 12 de fevereiro de 1998, à Fundação Shoah, criada pelo cineasta Steven Spielberg na década de noventa com o objetivo de preservar a memória dos sobreviventes judeus do holocausto nazista. No final do depoimento, o entrevistador, um sobrevivente de Auschwitz, lhe pergunta se gostaria de deixar uma mensagem, e meu avô termina assim: 

“Ame o próximo como a si mesmo. Daí que, se as pessoas amarem o próximo como a si mesmas, não haverá ódio, não haverá perseguições contra outras raças e outras pessoas e não haverá guerras. E se não houver guerras, não haverá holocaustos, nem contra judeus nem contra outros. É difícil, pois tudo isso é um sonho. Mas podemos sonhar” 

Imigrantes e estrangeiros carregam o estigma do “outro”, do “diferente”, do “perigo exterior”, aquele que, maquiavelicamente, desafia “nosso” estilo de vida, “nossos” valores, “nossos” empregos. Eu, por exemplo, tenho mais empatia com um “forasteiro” que gosta de ler Philip Roth do que um “igual” que considera Machado de Assis uma excrescência e o considera digno de censura. “Iguais” e “diferentes” são conceitos relativos.  

A xenofobia, esse ódio e medo do estrangeiro, de quem “vem de fora”, está tão entranhado no imaginário coletivo que até o ministro da educação reforça a ideia quando publica, numa rede social, o querido Cebolinha da Turma da Mônica reproduzindo o estereótipo linguístico referente aos chineses, que troca(ria)m a letra erre pela letra ele. No mínimo, piada de mau gosto. Aliás, meus avós, pecaminosamente, nunca perderam o sotaque estrangeiro. 

É curioso, e trágico, nos ludibriarmos com a ideia de que, ao transpormos uma linha imaginária que divide dois pedaços de terra, o ser humano que vem de lá é mais perigoso para mim do que eu, ao cruzar a linha daqui para lá. E, mais ainda, que as mazelas que eventualmente eu sofra do lado de cá, vai se aguçar por causa da presença de que vem de lá. Nações são comunidades imaginadas, apenas isso.  

É improvável que imigrantes, de modo geral, deixem seu lugar de origem porque acham divertido e incorporam o espírito aventureiro de Indiana Jones. As imagens atuais de crianças sírias e afegãs, amontoadas em campos de refugiados, morrendo ao relento, vítimas do frio inclemente e de doenças perfeitamente evitáveis em condições sanitárias humanas, e de crianças separadas dos pais na fronteira dos Estados Unidos com o México, não me deixam mentir.  

Meu avô foi um imigrante que “deu certo”, digamos assim. Mas, e se ele tivesse chegado “com uma mão na frente e outra atrás”? Mereceria menos consideração? Seria menos humano? A humanidade está submetida à utilidade econômica? Ou à “civilidade cultural”?

Em janeiro de 1952 – um ano depois do meu avô desembarcar no Rio de Janeiro -, Rubem Braga escreveu uma crônica no Correio da Manhã intitulada “Imigração”, baseada numa reportagem sobre a Ilha das Flores, local de triagem dos imigrantes recém-chegados, em que o articulista criticava a política imigratória nacional que abria as portas à gente “improdutiva”. A crônica termina assim: 

“A humanidade não vive apenas de carne, alface e motores. Quem eram os pais de Einstein?, eu pergunto; e se o jovem Chaplin quisesse hoje entrar nos Estados Unidos ou no Brasil, acaso poderia? Ninguém sabe que destino terão no Brasil essas mulheres louras, esses homens de profissões vagas. Eles estão procurando alguma coisa: emigraram. Trazem pelo menos o patrimônio de sua inquietação e de seu apetite de vida. (...) Sejamos humildes diante da pessoa humana: o grande homem do Brasil de amanhã pode descender de um clandestino que neste momento está saltando assustado na Praça Mauá, e não sabe aonde ir, nem o que fazer. Façamos uma política de imigração sábia, perfeita, materialista; mas deixemos uma pequena margem aos inúteis e aos vagabundos, às aventureiras e aos tontos, porque dentro de algum deles, como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção e a nossa glória”.  

Seria um mundo mais bonito se todos nós nos considerássemos eternos imigrantes.  


Comentários